terça-feira, março 29, 2011

NÃO LIGUEM, ESTOU MAL DISPOSTO ...

A (in)competência está inseparavelmente comprometida com os resultados que se obtêm. Pode não esgotar as razões mas, quando a persistência se torna certeza evidente, a suspeita arquitecta um saber avisado e, sobretudo, necessário. O meu primo Baltazar gosta muito de carros e diz-se um conductóre habilíssimo. No entanto, soma e segue acidentes inculpando prontamente os outros, e na falta de comparência destes, às más condições meteorológicas ou da estrada quando não a circunstâncias que só ele entende.

A Europa dos 6 aos 27 faz-me lembrar o meu primo Baltazar. Tem uma condução económica que aceita às cegas a eficiência do motor financeiro e dá crédito ao seu frenético comando, de perfil modernaço, tecnocrata e neoliberal, que “espertamente” denuncia culpas e aponta culpados nos acidentados que causa. Não será altura de mudar de máquina, de condução e de condutor, a bem da vida e dos peões que nela transitam?

Não. Não pensem nisso; ouçam antes um desabafo longínquo de José Mário Branco e entreguem-se ao sono tranquilo de todos os dias...
 
 
 

domingo, março 27, 2011

DESABAFO – SER, DEVER-SER OU SER MAIS …


Confronto-me vezes sem conta com manifestações do tipo sou o que sou, não há nada a fazer. O desabafo, que por si só cumpre a disposição humana da aquisição natural e legítima de uma estabilidade emocional momentânea, pode ser escoltado por um sentimento sublime de algum lamento ou, pelo contrário, por uma altiva e exígua auto-suficiência.

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Parece-me claro que ser o que se é não impede inevitáveis, e muitas vezes importunas, acareações com múltiplos dever-ser ou, diversamente, com a necessidade singular e sentida, nem sempre confessável, de ser diferente e melhor do que se é.

O dever-ser sempre me causou alguma perplexidade e, com as dúvidas que esta hesitação zelosamente coloca, esse dever-ser provoca-me, pela sua natureza exterior e impositiva, um incómodo desconforto percepcionado como vindo de interesses e poderes suficientemente distantes, que em nada ajudam a compreensão das coisas e a natural e insubstituível implicação pessoal.


O ser diferente, e o sentimento genuíno de se reconhecer melhor, convoca um desafio propriamente mais interessante, porque intrinsecamente humano e de incontornável responsabilização, na medida justa em que apela a um desenvolvimento do que se é, por nós mesmos. Convenhamos que ser o que se é, é algo em que nos tornamos em contextos sociais, culturais e económicos precisos em que o poder ser constitui um factor incontornável e que importa estimar.

Assim sendo, ser, ser diferente, ser mais é uma dificuldade que passa pelo querer, mas igualmente pelo poder ser. É aquele querer, em junção com este poder ser, em situações concretas de existência, que nos permite um fazer-se, aberto ao futuro e neste projetado. A construção do eu, no exercício da liberdade, da cidadania e da felicidade não pode deixar de passar por este fazer-se diferente e gradual para mais …

segunda-feira, março 21, 2011

A RELEVÂNCIA DO TRABALHO SOBRE OS REFERENCIAIS DE COMPETÊNCIAS-CHAVE

 

Uma face da temática relativa à Educação e Formação de Adultos (EFA) que interessa pôr em questão tem a ver com o processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC) na sua relação de aprendizagem com a formação e o desenvolvimento (das pessoas e das comunidades) no quadro mais amplo da Educação e Formação ao Longo da Vida.

 
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Começo por dizer que considero à partida importante que o processo de RVCC não seja, nem possa ser pensado, como um ponto de chegada de um decurso que, sublinhe-se, é necessariamente conjuntural e acontece num momento de certificação em grande escala. Tomá-lo como ponto de chegada seria assumir uma visão exígua, deficiente e, provavelmente, inclinado à pia fraude. O RVCC, apesar de se afirmar como um processo de validação e certificação de competências, tem de ser encarado como um momento dinâmico de um processo educacional mais amplo e permanente que, ao recolher desta perspectiva o alcance que importa fazer valer, seja capaz de (trans)formar as pessoas e as suas condições de existência.

Uma política que se anima nas estatísticas recorre e dá valor a uma retórica inclusiva que se dissimula na realidade social e humana excludente e se deixa levar pelo impudor de uma lógica paliativa que difunde um discurso enganador à volta das oportunidades e da empregabilidade e que, como consequência, apenas contribui para distribuir esperanças dificilmente realizáveis. O que merece ser desejado é, provavelmente, coisa diferente, ou seja, a valorização do processo na sua dimensão formativa consubstanciada no balanço de competências que nele se inscreve, tendo em vista favorecer a formatividade, necessariamente presente, nos projetos futuros, pessoais e colectivos, dos adultos envolvidos. Distante disso, e com efeitos perversos, é o empenhamento obstinado na imobilidade da ideia da avaliação sumativa, em desfavor do valor intrínseco da função formativa aqui referido, dando uma atenção desmedida aos diplomas e às certificações como objectivos quase únicos do reconhecimento e da validação.

É neste contexto e perspectiva que se pode e deve colocar uma consideração essencial, ou seja, questionar o foco que se privilegia ao longo do processo de RVCC, o do fechamento no individual ou, diferentemente, o foco na relação aberta do adulto com o outro e com o meio. Perante tal questionamento a diferença constitui-se na importância que se confere à existência ou não de espaços para o debate de problemas comuns e, consequentemente, na valorização das abordagens partilhadas e reflectidas de possibilidades, naturalmente diversas, de perspectivação e ação. Em jeito de conclusão, poder-se-á discutir se o trabalho sobre a explicitação das evidências no processo de reconhecimento e validação deve favorecer ou não novas formas de perceber e perspectivar o social e o mundo e de agir sobre eles de modo mais informado e ajustado?

Proporcionar situações que favoreçam, neste quadro, o debate e o esclarecimento das relações sociais e de poder desiguais é, igualmente, um desafio ético que não se pode deixar de inscrever na dimensão reflexiva do processo. As realidades sociais e as condições de existência devem constituir objecto de questionamento de modo a impedir que possam continuar a ser pensadas como inevitabilidades. É neste contexto de preocupações que algumas perspectivas se apresentam e se anunciam neste campo da Educação de Adultos (EA) e que interessa reter. A EA como um lugar e um espaço social onde a crítica realmente acontece e a busca de alternativas constitui um desafio claro de cidadania e de educação, proporcionando ao adulto situações de análise da sua situação pessoal e da sociedade em que se insere, de modo a trabalhar e a apurar a sua consciência nos planos do social e do político. Ou, longe disso, a ambição fica-se pelo meramente técnico e instrumental, oscilando entre um individualismo possessivo e o poder globalizado da economia.

Por último, acrescente-se que o factor tempo constitui um elemento decisivo porque dele depende, como condição indispensável, a qualidade do trabalho a desenvolver nos planos formativo e metodológico. Os momentos incontornáveis de compreensão e maturação do processo, de exploração pessoal e partilhada das biografias formativas dos adultos face às exigências do referencial e, por fim, as contrariedades decorrentes das dificuldades de escrita no desenvolvimento de um portefólio reflexivo, exigem tempo, serenidade e perseverança. O reconhecimento generalizado das fragilidades de natureza educativa e cultural da grande maioria dos adultos portugueses, que ocorrem natural e logicamente de escolaridades curtas, convoca metodologias e suportes de mediação em que o recurso tempo não é dispensável, no sentido de facilitar e favorecer a ocorrência desejável das autonomias que se pretendem fazer crescer.

O terreno dilemático acima aludido, associado a esta questão incontornável do tempo, traz à colação a possibilidade ou não de se considerar a mudança social como um propósito maior, fulcral e legítimo no âmbito da educação e formação de adultos. Assim sendo, a questão pertinente que se pode ou deve colocar é esta; será possível aos Centros de Novas Oportunidades (CNOS) trabalhar o referencial de competências-chave neste sentido crítico e transformador, das pessoas e dos seus contextos de existência, ou, pelo contrário, aos CNOS não resta outra alternativa que não seja a da renúncia, por filosofia ou por incapacidade, de considerar a mudança social como propósito educativo?

UM REGRESSO QUE SE SAÚDA

Texto de 04MARÇO2010
As aprendizagens que se fazem são, obrigatoriamente, coniventes com a sua utilidade, com o sentido que se lhes confere e com o significado que se lhes outorga, no percurso inseparável do crescimento e desenvolvimento das pessoas. Daí, a importância do exercício contextualizado da significação dos saberes, necessidades, interesses e expectativas. Persiste-se, apesar desta constatação, em considerar que o conhecimento se funda na representação de um mundo que é exterior e independente de quem o procura reconhecer.
 
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Relacionar o futuro, a vida e a formação, não é harmonizável seguramente com esta forma de pensar. O ser humano não é, igualmente e em absoluto, marcado pela indiferença e pela passividade. Ele persegue objectivos ou reage a perturbações de desconforto e de desassossego, embora os medos e as inseguranças encubram essa verdade. O homem sente uma necessidade profunda de uma ordem compreensível e, particularmente, afectuosa para o seu mundo vivencial.
 
É humanamente natural repetir as experiências consideradas agradáveis e evitar outras que originaram apoquentações. Acerca de umas e de outras, reflete-se e desenvolve-se no ser humano um tipo de conhecimento que se lhe adequa e constitui esperança de ajuda para o seu futuro. O conhecimento não institui, nesta linha lógica de raciocínio, uma representação pura do mundo. Envolve projetos de ação, conceitos e pensamentos que lhe são supostamente proveitosos e que, de modo gradual, se alargam num processo integrador de maior complexidade.
 
A escola não merece ser, como tradicionalmente se decreta, apenas um momento de preparação para a vida. Ela deve ser evidentemente valorizada como um espaço vocacionado para a produção de aprendizagens essenciais sem, contudo, deixar de ser um lugar de vida por excelência. Negligenciar este último aspecto é desvalorizar histórias e testemunhos bem significativos daqueles que nela viveram e dela retiraram coisas boas e outras menos boas, quando não, algumas más ou mesmo irreparáveis. Para a vida e para o futuro, deles e dos outros.
 
Não há vida sem sentido pelo que se segue ou persegue e pelo que nesse movimento se vai conhecendo e apreendendo. A história reflexiva de uma vida não é um simples relato de um caminho percorrido. Os trilhos de outrora são hoje outros lugares cuja compreensão obriga à difícil, e por vezes dolorosa, conquista ao desconhecimento da significação que ficou por esclarecer. Se assim é, as fontes do sentido e da reflexão não podem ser dispensadas quando se pretende atingir aquela matriz identitária que organiza os interesses, as vontades, as motivações e que, em consequência, anima a ação humana, individual e colectiva.
 
Emancipar é tornar o caminhar humano mais livre, fazendo concordar as esferas do sentido e da ação, acreditando que não há sentido no mundo, nem tão pouco que o mundo apresenta um sentido que importa procurar ou buscar. O sentido que aqui se defende, subentende uma compreensão feita vontade ou desejo que a linguagem e a razão dos homens multiplica através das palavras, dos seus interesses, valores e projetos.
 
O sentido não se procura onde se está, mas para onde se pretende ir, não está no que se é hoje, mas no que quer ser no futuro e, sobretudo, não está na realidade que agora se habita, mas no amanhã que se ajuda (ou não) a construir. A relação com o futuro passa, então, por criar renovadas possibilidades para além das virtualidades que a esperança e o optimismo salutarmente transportam. Ação, projeto, vontade e pensamento são, entre outros, elementos que se associam no seu processo de interação e combinação através dos saberes, das competências e dos valores que suportam o seu decurso.
 
Neste quadro de referências, interessa que o universo das competências não se limite aos domínios técnicos e instrumentais da empregabilidade e da profissionalidade. Deve-se estender esse universo às competências emancipadoras, fundamentalmente às competências sociais e culturais, através do questionamento crítico sobre o que rodeia e domina a vida das pessoas, desocultando os enredos da alienação que as acompanha.
 
Querer e saber construir futuro passa por uma concepção de escola onde todos se possam sentir mais fortes e mais dignos e onde as correntes de afeição e de fraternidade humanas constituam, entre outros, alicerces primordiais de um reanimado empreendimento na promoção e aperfeiçoamento de um amanhã diferente e melhor para todos. Saúde-se, então, o regresso de centenas de milhares de adultos ao mundo da educação e da formação e que, a verdade e coerência políticas evitem uma decepção histórica irremissível.

domingo, março 20, 2011

RVCC – HISTÓRIAS DE VIDA E IDENTIDADES

Texto de 17ABRIL2010

A oportunidade de ler, ao longo destes últimos anos, muitas centenas de histórias de vida na qualidade de avaliador externo, no âmbito do processo de reconhecimento, validação e certificação de competências (RVCC), permite-me partilhar uma breve reflexão que pode ter algum interesse no plano da educação e formação dos adultos e não só.

 Começo por manifestar, que uma das dimensões de análise que sempre privilegiei, e continuo a privilegiar, é a da apreensão da forma como o adulto se apresenta e se define como pessoa ao longo das narrativas. Essa significação desenvolve-se e expressa-se, na generalidade das vezes, através da enunciação de características que ele estima como necessárias e representativas da sua pessoa enquanto ser humano.
 
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No fundo, o adulto apresenta-se através da(s) sua(s) identidade(s), sem ter disso uma consciência clara. Situa-se nos seus espaços múltiplos e diversos de pertença e expressa, por aceitação ou oposição, os valores que lhe favorecem a orientação ou, pelo contrário, lhe sugerem desafios. Em síntese, o adulto expõe nas suas narrativas, para além das características pessoais próprias, os momentos e os elementos mais significantes do seu processo evolutivo de (trans)formação como pessoa.

 

Particularmente curioso é verificar a opacidade que obscurece a relação entre essas identidades, os contextos que as constituem e o exercício de uma vontade própria contextualizada que se confunde com uma “liberdade” feita de constrangimentos, compromissos e identificações que escapam à consciência. A culpabilização indevida do adulto em inúmeras situações, onde o abandono escolar apenas constitui um entre muitos exemplos esclarecedores, revela exatamente isso. Ou seja, o relato dessas situações apresenta interpretações imperfeitas que, sendo mais marcadas pelo horizonte social e cultural do adulto, aparecem como escolhas pessoais sentidas e confessadas como soberanas.

A metodologia assente na história de vida, para além dos seus objectivos mais instrumentais, apadrinha reflexões relevantes que permitem a descoberta de “outros significantes” que, logicamente, não deixam de favorecer o diálogo do adulto consigo próprio e com os outros no esclarecimento de vínculos múltiplos que resultam da inevitabilidade decorrente do carácter dialógico e intrínseco da condição humana.
 
Como se sabe, é pela comunicação que os homens estabelecem interdependências, se reconhecem uns aos outros, celebram afectividades e promovem sociabilidades.
Neste universo de vínculos múltiplos e de natureza diversa é que o adulto vai constituindo a(s) sua(s) identidade(s) e aperfeiçoando a sua própria individualidade. Saber quem se é passa por se reconhecer o seu mundo, ou seja, trazer à consciência as comunidades produtoras de sentido a que se pertence. Os adultos organizam a complexidade da relação que estabelecem face aos outros e ao mundo através da(s) suas identidade(s). Deste modo, refletir sobre a sua história de vida não é mais do que o propor ao adulto que reescreva a história dos seus compromissos, limites, inclusões e exclusões, inscrevendo nela crenças, valores e sentidos.

No entanto, por vezes, rejeita-se a história e desafia-se a(s) identidade(s). Mas como nos diz Pio Abreu, em “Quem nos faz como somos” (Edições Dom Quixote) “ … se a identidade for aberta à experiência, a mudança não faz mais do que enriquecê-la”. A fase de reconhecimento, sem prejuízo das etapas seguintes (validação e certificação), pode e deve apoiar aquela abertura, isto é, fomentar a passagem da fronteira pessoal à construção histórica e narrativa da(s) respectiva(s) identidade(s).

DUALISMOS MAL RESOLVIDOS

Texto de 06ABRIL2010
Dissociar aprendizagem de desenvolvimento é separar a tarefa a executar do sujeito que a deve cumprir. Não é obrigatório ser-se perito para entender que as aprendizagens estimulam o desenvolvimento e este beneficia aquelas. Aliás, no meu despretensioso ponto de vista, as aprendizagens só são verdadeiramente educativas se concorrem para o desenvolvimento humano na sua multidimensionalidade.
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Por outro lado, e ao contrário de muitos, penso que a escola, em termos estruturais, pouco tem mudado: no que respeita aos currículos, ao nível do ensino e à sua organização e funcionamento. O formato caracterizado pelo ensino expositivo, pela passividade dos alunos, pela especialização disciplinar e pela uniformidade de processos esbate algumas mudanças entretanto efectuadas, desvalorizando-lhes, na prática, o significado.
 
O insucesso escolar é naturalmente indesejável. Ontem como hoje. Mas problema bem maior, recuando no tempo, era o número dos que nem possibilidades tinham de serem partes nesse malogro. O mesmo argumento pode ser igualmente aplicado ao fenómeno do abandono escolar. A mesmíssima escola foi incapaz de acolher e trabalhar a diversidade, face à sua inépcia em incorporar a inerência relacional entre desenvolvimentos inevitavelmente díspares e as propostas invariáveis de aprendizagens e modos de as realizar.
 
A uniformidade das práticas, mais do que a unidade dos currículos, constitui uma circunstância decisória na subversão daquela relação e, analogamente, funda uma condição legitimadora de uma avaliação sumativa padronizada que tonifica, em termos lógicos, a improficiência da escola em responder aos desafios colocados pelas múltiplas dissemelhanças com que esta se confronta.
 
Opor os saberes científicos, entronizados como o único conhecimento relevante e organizado em subcategorias correspondentes à divisão disciplinar do currículo, ao saber que emerge da racionalidade da atividade e da interação, interpelante e interpretativo, favorece a suposta oposição - aquisição de conhecimentos versus desenvolvimento de competências - ou seja, convida à legitimação intolerável da contraposição entre conhecimentos e competências.
 
J. I. Pozo, no seu livro “Aquisição de Conhecimento” (págs. 164 a 171), apresenta um texto bastante curioso intitulado “Mentes diferentes para culturas diferentes”. Neste texto, Pozo começa por referir que não é exagerado afirmar que a maioria das correntes dominantes, em termos da pesquisa da aprendizagem humana, durante o século passado, aceitou a universalidade dos processos psicológicos, crença, aliás, profundamente enraizada na nossa tradição cultural.
 
Em grande parte da pesquisa efectuada, comprova-se, diz Pozo, que aquela se realizou, de forma descontextualizada, com ou sobre um sujeito e com base na aceitação implícita do pressuposto de que o funcionamento psicológico básico é anterior a qualquer experiência cultural. No entanto, embora minoritário mas significativo, um outro conjunto de pesquisas no âmbito da psicologia cultural, mostra, pelo contrário, discrepâncias, em diferentes sociedades, nas formas de representar e apre(e)nder o mundo. Dito de outro modo, o que estes trabalhos desvendam é que os sistemas de representação emergem da necessidade de dar solução a problemas originados pela atividade social, assim se gerando novas funções epistémicas e cognitivas.
 
Centrando-se em pesquisas mais recentes, onde se procura comparar os sistemas de conhecimento ocidental e oriental, Pozo refere que alguns estudiosos estabelecem uma série de diferenças entre o que eles chamam de tradição analítica ou ocidental e de tradição holística ou oriental. Resumidamente e em traço grosso, poder-se-á dizer que na nossa tradição ocidental o conhecimento está centrado na análise dos atributos do objecto, enquanto na tradição oriental situa-se o objecto no contexto do qual aquele não se separa ou se abstrai.
 
Sem pretensão de anexar mais e significativos desenvolvimentos, acrescente-se que Pozo conclui que cada um de nós adquire o conhecimento no âmbito de uma cultura que se apoia numa série de pressupostos implícitos, habitualmente não expressos, em relação à própria natureza desse conhecimento e dos seus mecanismos de aquisição. Ou seja, as distintas epistemologias implícitas não dirigem somente a aquisição de conhecimento, mas, igualmente, a sua produção cultural.
 
Neste contexto, Pozo refere Motokawa (1) que, reconhecendo o êxito indubitável da ciência ocidental, não deixa de a interpelar, ao avançar que uma ciência vive na história e que o seu valor adaptativo vai depender dos estádios de desenvolvimento da própria ciência e da sociedade, não deixando de recordar que no mundo operam outros tipos de ciência.
 
Deste modo e nesta linha de pensamento, Pozo elenca um conjunto de aspectos que a psicologia cognitiva deve aceitar para dar conta da aquisição de conhecimento e que fazem parte da tradição cultural da ciência oriental. Entre outros, menciona a relevância das imagens e das representações analógicas, a importância do contexto e da pragmática no conhecimento, as relações entre o implícito e o explícito, a superação de diferentes dualismos (processo/conteúdo, sujeito/objecto, natureza/cultura, etc.) e, ainda, a busca de uma integração entre formas e sistemas de representação em desfavor da aceitação de uma lógica dissociativa ou dicotómica.
 
Os conhecimentos científicos são fundamentais à aquisição e ao desenvolvimento de competências e o exercício destas amplia e integra aqueles, acrescentando-lhes os saberes emergentes decorrentes do potencial aprendente e operante inscritos na ação e inerentes às suas dimensões de indagação, transformação e permanente (re)significação. Assim sendo, mais do que ensinar os conteúdos, importa saber como os trabalhar, de modo a que os respectivos aprendentes deles se apropriem, pressupondo que a atividade na aprendizagem favorece a apropriação ambicionada e esta incrementa, de forma indiscutível, a ação competente.
 
O ensino expositivo, a passividade dos alunos, a especialização disciplinar e a uniformidade de processos constituem uma matriz que importa interpelar. As competências não se podem reduzir à imagem de realidades em potência, mas devem, isso sim, constituir objecto do trabalho educativo como realidades em ato, através do seu exercício intencional e de aplicação aos contextos pedagógicos, às situações de aprendizagem e às atividades específicas que as convocam. Assim, resta almejar que se resolva, e bem, este inexato mas imperecível e enigmático dualismo entre saberes e competências. Será que a tradição oriental nos poderá ajudar?
 
(1) – Investigador que, em conjunto com outros (Nisbett, Peng, Serpell, Hatano, Tweed, Lehman, …), comparou o sistema de conhecimento ocidental e oriental, analisando o modo como as distintas formas de conhecer influenciam a construção das mentes.

sexta-feira, março 18, 2011

O MEU AMIGO EDMUNDO E O DESPUDOR DOS CONSENSOS

Nem sempre é fácil acertar uma almoçarada com o meu amigo Edmundo. Ou uma jantarada. Aposentado, eu imagino afazeres e arremato persistentemente com a falta de tempo. Ele, por sua vez, exige tempo e reivindica a minha disponibilidade, apesar da sua situação no ativo. Eu não dispenso a família. O Edmundo não renuncia às propostas da vida. Assim sendo, os nossos encontros estão irremediavelmente condenados por estes murmúrios da vida e da moral que a ordena.

Tagarelamos de tudo o que é imaginável – ou nem tanto - pendurando, na pior das circunstâncias, uma ou outra matéria de desmedida atualidade. Ao fim de algum tempo, como que respondendo tanto à necessidade partilhada de colocar ordem no caos dos factos como à fragmentação dos argumentos e à ambivalência das emoções, recuperamos os temas de sempre, na busca cândida de nos sentirmos à altura da complexidade e da insondabilidade dos enigmas sociais e humanos.
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O Edmundo, não sendo propriamente um ouvinte bonacheirão, escuta-me com a delicada paciência pedagógica de quem já há muito antecipou a minha reiterada distração pelo sentido das coisas que vão acontecendo. Constrangidos pela acumulação dos acontecimentos, dos imediatos aos mediáticos, o Edmundo incrimina-me de desbaratar a humildade necessária ao admitir as balizas da certeza, daquela que se obstina em tudo aclarar, e da sua achacadiça romantização.

Aliás, Edmundo vai mais longe. Sugere-me um outro tipo de arrojo crítico. Convida-me a forjar tempo e afoiteza para conspirar contra os múltiplos poderes, complexos e ambíguos, que tornam a nossa vida desmesuradamente estranha. Estimular a compreensão face às abastecidas dramatologias do poder, diz ele com aquele seu ar sempre leve, passa por tentar enxergar as razões por que o caos se percepciona como ordem e esta, por vezes, encobre a clareza do desconcerto.

Sócrates e as suas faces ocultas constituíram o mote para uma curiosa e agradável cavaqueira que de imediato e inesperadamente fez sair de cena o primeiro-ministro. Pois mal eu frisei a importância de se obterem consensos alargados sobre alguns aspectos essenciais ao funcionamento da democracia, logo o Edmundo sorriu, largou os talheres discretamente sobre o prato e chispou: - Amigo, quem valoriza assim tanto os consensos não deve ter uma consciência clara dos limites da sua utilidade. - Como assim? - perguntei eu, expectante.

O Edmundo, numa cadência gradualmente mais viva e acusativa, vai aclarando que, em termos sociais, convém aos múltiplos poderes marcar o passo da exercitação da cidadania. Diz ele que as diferenças e os conflitos, sendo a sua seiva interpelante, não se lhes pode permitir que circulem à vontade pela praça pública. Na opinião do Edmundo, o expediente deste tipo de consenso, escoltado normalmente pelo aplauso político desbragado, procura – tão-só – trabalhar e controlar o seu uso em proveito próprio. E é com olhar firme que me questiona: - O que seria da acarinhada arrumação social se a obediência à epistemologia da cegueira e do conformismo não operasse?

E o Edmundo continua: - Não te esqueças que os poderes apreciam a afabilidade democrática dos atores, mas abominam a autoria dos criadores e, muito visivelmente, as suas tendências à subjetivação livre e irrefreável. Os consensos servem, na maioria das vezes, a obra do hegemónico, do conhecimento instrumental e instrumentalizado e dos costumes protetores que suportam aquele caos que se percepciona como ordem e a que há pouco aludi. Em síntese, o Edmundo sublinha a ideia, com um ar invulgarmente empenhado, do interesse dos poderes em se socorrerem do consenso cínico que fabrica o conhecimento que acautela a ação desejada e, principalmente, se torna na sua norma inquestionável.

Mas o Edmundo vai mais longe: - O consenso impudente, afirma ele, aspira à adaptação e à domesticação de comportamentos e horizontes, procurando persistentemente calar e silenciar as singularidades incómodas. Os atores só se tornam autores em espaços de criação solidária, de apelo à participação ativa e ao exercício de uma cidadania que não dispensa a energia da emoção. O que se faz (ou vai fazendo) e o que se conhece (ou vai conhecendo) tem de ser compreendido como significativo e pertinente nas e para as ações que a todos digam respeito. Este é um outro consenso, rematou o Edmundo. - É o consenso tranquilo de uma insatisfação persistente feita de partilha, de valorização das diferenças, de escuta, de implicação e de subjetivação. Olhei para o meu amigo Edmundo e, em silêncio, desabafei para com os meus botões: - Falas-me de um consenso tristemente adormecido à sombra da visibilidade social e consumista de outros assentimentos...

AS ABORDAGENS NECESSÁRIAS OU … SIMPLESMENTE “IRRESPONSÁVEIS”?

 

Mais vale tarde do que nunca recusar os alicerces teóricos que procuram confirmar a validade e, com esta, a legitimidade das políticas económicas que insistem estar na ordem do dia. A atual crise, pico de um ataque há muito anunciado, põe a nu não só o carácter tristemente dogmático dos princípios apresentados como as consequências profundamente desumanas e injustas da sua aceitação. A sua eficiência e racionalidade são cada vez mais sentidas e entendidas como patranhas descaradas mesmo que travestidas de expressões supostamente generosas e persuasivas como “corte das despesas” ou “pactos de estabilidade”. Outras opções são possíveis e desejáveis em matéria de política económica. Urge que nos libertemos, o mais rapidamente possível, do garrote estabelecido pelos poderes financeiros às políticas públicas. Vale pena ouvir …

 

quarta-feira, março 16, 2011

O ELOGIO DA URBANIDADE

 

No dia 12 de Março assistiu-se a uma manifestação de dimensões incomuns que, apesar das múltiplas e diferentes motivações dos presentes, tiveram como base consensual do agastamento político, a indignação e o protesto perante o desemprego e a precariedade. Cerca de 300 mil cidadãos, jovens, famílias e outros acompanhantes contestatários deram corpo e visibilidade à iniquidade social enodoada pela escassez do trabalho, sua instabilidade e irreprimível insegurança, ao qual se associa ainda o desalento de um tempo em que as dificuldades acrescidas derretem os justificados horizontes de uma vida decente.

No entanto, sublinhe-se que o povo que esteve presente nesta recusa não é um povo qualquer. Trata-se de gente distintamente escolarizada que tem sentido a necessidade – e a legítima possibilidade – de acompanhar a exigência social de não se deixar inabilitar perante a tendencial desqualificação dos diplomas escolares. Fortemente arreigada em sectores sociais onde os recursos de um modo geral não escasseiam, esta crença, se por um lado alimenta e reforça o sentimento de injustiça dos vitimizados, convoca a natural e espontânea solidariedade e reconhecimento públicos.

img_37331No entanto, convenhamos, que muitos outros jovens e famílias, em situações bem mais desfavoráveis, não estiveram provavelmente presentes na manifestação de 12 de Março. Se esta inferência fizer algum sentido e, sobretudo, encerrar alguma verdade essencial, a ilação daí decorrente coloca um problema de análise que importa considerar e sobre ele refletir. Nesta linha de pensamento, é bom lembrar, que os processos de identificação, sendo processos naturalmente subjetivos, as suas modalidades de expressão não estão, por sua vez, sujeitas às incertezas do acaso na justa medida em que aqueles processos acontecem em contextos precisos feitos de representações, imagens e emoções, fortemente partilhadas e significantes.

Nesta perspectiva, julgo não ser novidade para ninguém que a marginalização conjugada com a penúria de recursos, designadamente económicos, sociais e culturais, introduz no espaço saturado de desigualdades novas desigualdades que fomentam estigmas sérios e múltiplos, cuja reversão pode, em circunstâncias muito especiais, apelar à libertação de uma energia emocional compensatória necessária à sentida, embora confusa, reparação de uma estima persistentemente desrespeitada, quando não violentada. Ou seja, penso que passa por este registo explicativo os fenómenos de identificação colectiva que se vão gerando nalguns subúrbios das grandes cidades europeias, onde os défices de reconhecimento se traduzem na formação, por vezes explosiva, de dinâmicas visíveis e ostensivas de oposição e conflito. O elogio da civilidade tem, naturalmente, limites. É bom ter disso consciência …

segunda-feira, março 14, 2011

GRITO e ARGUMENTO

As imagens e as emoções contraditórias deste mundo conturbado estorvam o exercício da inteligência e a busca da coerência interior. Os pretextos para a revolta e para o grito alimentam raivas que teimam em merecer o zelo do refreamento. Desse silêncio inquieto sobra apenas o insignificante grito que se perde na vacuidade das referências e na hesitação dos propósitos. Grite-se … mas ao grito associe-se o dizer que o significa e o argumento que lhe dá sentido. Sociabilize-se, assim, o grito e saiba-se construir uma harmonia de vozes que se possa fazer ouvir e, desse murmúrio em uníssono, encorajar movimentos consequentes de indignação e ação. Ao grito ajunte-se a exigência do merecido argumento que importa…

IMPORTA UNIR E ORGANIZAR AS IMPACIÊNCIAS E CORRER COM OS BANDALHOS




image001A vida social vai-se corroendo porque aos políticos medíocres se junta uma gentalha técnica prostituída e a estes se associa uma comunicação social conspurcada pela sordidez da bajulação e da submissão. São medíocres os primeiros porque abdicam da nobreza moral do exercício político que são os fins e prostituem-se os segundos, aos quais se juntam os serventuários do ofício jornalístico transmudados em detentores de opinião, na justa medida em que todos estes se servem dos arcanos da decisão e do palco da divulgação políticas para favorecimentos particulares de vária ordem. E assim se vai dissolvendo a política a favor de uma economia - a que vamos tendo - que destrói premeditadamente todo e qualquer outro sistema capaz de legitimação que acione renovados sentidos para a vida social e colectiva e que seja igualmente apto de anunciar horizontes que estimulem um claro sentido às nossas obrigações como humanos e cidadãos. A crítica que não rejeita frontalmente esta fétida ordem do “monismo económico” revela, na minha opinião, uma incapacidade em compreender o essencial da “topografia” moral e ideológica que nos vai docemente entorpecendo …