A Europa dos 6 aos 27 faz-me lembrar o meu primo Baltazar. Tem uma condução económica que aceita às cegas a eficiência do motor financeiro e dá crédito ao seu frenético comando, de perfil modernaço, tecnocrata e neoliberal, que “espertamente” denuncia culpas e aponta culpados nos acidentados que causa. Não será altura de mudar de máquina, de condução e de condutor, a bem da vida e dos peões que nela transitam?
domingo, março 20, 2011
RVCC – HISTÓRIAS DE VIDA E IDENTIDADES
A oportunidade de ler, ao longo destes últimos anos, muitas centenas de histórias de vida na qualidade de avaliador externo, no âmbito do processo de reconhecimento, validação e certificação de competências (RVCC), permite-me partilhar uma breve reflexão que pode ter algum interesse no plano da educação e formação dos adultos e não só.
Começo por manifestar, que uma das dimensões de análise que sempre privilegiei, e continuo a privilegiar, é a da apreensão da forma como o adulto se apresenta e se define como pessoa ao longo das narrativas. Essa significação desenvolve-se e expressa-se, na generalidade das vezes, através da enunciação de características que ele estima como necessárias e representativas da sua pessoa enquanto ser humano.
A metodologia assente na história de vida, para além dos seus objectivos mais instrumentais, apadrinha reflexões relevantes que permitem a descoberta de “outros significantes” que, logicamente, não deixam de favorecer o diálogo do adulto consigo próprio e com os outros no esclarecimento de vínculos múltiplos que resultam da inevitabilidade decorrente do carácter dialógico e intrínseco da condição humana.
No entanto, por vezes, rejeita-se a história e desafia-se a(s) identidade(s). Mas como nos diz Pio Abreu, em “Quem nos faz como somos” (Edições Dom Quixote) “ … se a identidade for aberta à experiência, a mudança não faz mais do que enriquecê-la”. A fase de reconhecimento, sem prejuízo das etapas seguintes (validação e certificação), pode e deve apoiar aquela abertura, isto é, fomentar a passagem da fronteira pessoal à construção histórica e narrativa da(s) respectiva(s) identidade(s).
DUALISMOS MAL RESOLVIDOS
sexta-feira, março 18, 2011
O MEU AMIGO EDMUNDO E O DESPUDOR DOS CONSENSOS
Nem sempre é fácil acertar uma almoçarada com o meu amigo Edmundo. Ou uma jantarada. Aposentado, eu imagino afazeres e arremato persistentemente com a falta de tempo. Ele, por sua vez, exige tempo e reivindica a minha disponibilidade, apesar da sua situação no ativo. Eu não dispenso a família. O Edmundo não renuncia às propostas da vida. Assim sendo, os nossos encontros estão irremediavelmente condenados por estes murmúrios da vida e da moral que a ordena.
Tagarelamos de tudo o que é imaginável – ou nem tanto - pendurando, na pior das circunstâncias, uma ou outra matéria de desmedida atualidade. Ao fim de algum tempo, como que respondendo tanto à necessidade partilhada de colocar ordem no caos dos factos como à fragmentação dos argumentos e à ambivalência das emoções, recuperamos os temas de sempre, na busca cândida de nos sentirmos à altura da complexidade e da insondabilidade dos enigmas sociais e humanos.
O Edmundo, não sendo propriamente um ouvinte bonacheirão, escuta-me com a delicada paciência pedagógica de quem já há muito antecipou a minha reiterada distração pelo sentido das coisas que vão acontecendo. Constrangidos pela acumulação dos acontecimentos, dos imediatos aos mediáticos, o Edmundo incrimina-me de desbaratar a humildade necessária ao admitir as balizas da certeza, daquela que se obstina em tudo aclarar, e da sua achacadiça romantização.
Aliás, Edmundo vai mais longe. Sugere-me um outro tipo de arrojo crítico. Convida-me a forjar tempo e afoiteza para conspirar contra os múltiplos poderes, complexos e ambíguos, que tornam a nossa vida desmesuradamente estranha. Estimular a compreensão face às abastecidas dramatologias do poder, diz ele com aquele seu ar sempre leve, passa por tentar enxergar as razões por que o caos se percepciona como ordem e esta, por vezes, encobre a clareza do desconcerto.
Sócrates e as suas faces ocultas constituíram o mote para uma curiosa e agradável cavaqueira que de imediato e inesperadamente fez sair de cena o primeiro-ministro. Pois mal eu frisei a importância de se obterem consensos alargados sobre alguns aspectos essenciais ao funcionamento da democracia, logo o Edmundo sorriu, largou os talheres discretamente sobre o prato e chispou: - Amigo, quem valoriza assim tanto os consensos não deve ter uma consciência clara dos limites da sua utilidade. - Como assim? - perguntei eu, expectante.
O Edmundo, numa cadência gradualmente mais viva e acusativa, vai aclarando que, em termos sociais, convém aos múltiplos poderes marcar o passo da exercitação da cidadania. Diz ele que as diferenças e os conflitos, sendo a sua seiva interpelante, não se lhes pode permitir que circulem à vontade pela praça pública. Na opinião do Edmundo, o expediente deste tipo de consenso, escoltado normalmente pelo aplauso político desbragado, procura – tão-só – trabalhar e controlar o seu uso em proveito próprio. E é com olhar firme que me questiona: - O que seria da acarinhada arrumação social se a obediência à epistemologia da cegueira e do conformismo não operasse?
E o Edmundo continua: - Não te esqueças que os poderes apreciam a afabilidade democrática dos atores, mas abominam a autoria dos criadores e, muito visivelmente, as suas tendências à subjetivação livre e irrefreável. Os consensos servem, na maioria das vezes, a obra do hegemónico, do conhecimento instrumental e instrumentalizado e dos costumes protetores que suportam aquele caos que se percepciona como ordem e a que há pouco aludi. Em síntese, o Edmundo sublinha a ideia, com um ar invulgarmente empenhado, do interesse dos poderes em se socorrerem do consenso cínico que fabrica o conhecimento que acautela a ação desejada e, principalmente, se torna na sua norma inquestionável.
Mas o Edmundo vai mais longe: - O consenso impudente, afirma ele, aspira à adaptação e à domesticação de comportamentos e horizontes, procurando persistentemente calar e silenciar as singularidades incómodas. Os atores só se tornam autores em espaços de criação solidária, de apelo à participação ativa e ao exercício de uma cidadania que não dispensa a energia da emoção. O que se faz (ou vai fazendo) e o que se conhece (ou vai conhecendo) tem de ser compreendido como significativo e pertinente nas e para as ações que a todos digam respeito. Este é um outro consenso, rematou o Edmundo. - É o consenso tranquilo de uma insatisfação persistente feita de partilha, de valorização das diferenças, de escuta, de implicação e de subjetivação. Olhei para o meu amigo Edmundo e, em silêncio, desabafei para com os meus botões: - Falas-me de um consenso tristemente adormecido à sombra da visibilidade social e consumista de outros assentimentos...
AS ABORDAGENS NECESSÁRIAS OU … SIMPLESMENTE “IRRESPONSÁVEIS”?
Mais vale tarde do que nunca recusar os alicerces teóricos que procuram confirmar a validade e, com esta, a legitimidade das políticas económicas que insistem estar na ordem do dia. A atual crise, pico de um ataque há muito anunciado, põe a nu não só o carácter tristemente dogmático dos princípios apresentados como as consequências profundamente desumanas e injustas da sua aceitação. A sua eficiência e racionalidade são cada vez mais sentidas e entendidas como patranhas descaradas mesmo que travestidas de expressões supostamente generosas e persuasivas como “corte das despesas” ou “pactos de estabilidade”. Outras opções são possíveis e desejáveis em matéria de política económica. Urge que nos libertemos, o mais rapidamente possível, do garrote estabelecido pelos poderes financeiros às políticas públicas. Vale pena ouvir …
quarta-feira, março 16, 2011
O ELOGIO DA URBANIDADE
No dia 12 de Março assistiu-se a uma manifestação de dimensões incomuns que, apesar das múltiplas e diferentes motivações dos presentes, tiveram como base consensual do agastamento político, a indignação e o protesto perante o desemprego e a precariedade. Cerca de 300 mil cidadãos, jovens, famílias e outros acompanhantes contestatários deram corpo e visibilidade à iniquidade social enodoada pela escassez do trabalho, sua instabilidade e irreprimível insegurança, ao qual se associa ainda o desalento de um tempo em que as dificuldades acrescidas derretem os justificados horizontes de uma vida decente.
No entanto, sublinhe-se que o povo que esteve presente nesta recusa não é um povo qualquer. Trata-se de gente distintamente escolarizada que tem sentido a necessidade – e a legítima possibilidade – de acompanhar a exigência social de não se deixar inabilitar perante a tendencial desqualificação dos diplomas escolares. Fortemente arreigada em sectores sociais onde os recursos de um modo geral não escasseiam, esta crença, se por um lado alimenta e reforça o sentimento de injustiça dos vitimizados, convoca a natural e espontânea solidariedade e reconhecimento públicos.
No entanto, convenhamos, que muitos outros jovens e famílias, em situações bem mais desfavoráveis, não estiveram provavelmente presentes na manifestação de 12 de Março. Se esta inferência fizer algum sentido e, sobretudo, encerrar alguma verdade essencial, a ilação daí decorrente coloca um problema de análise que importa considerar e sobre ele refletir. Nesta linha de pensamento, é bom lembrar, que os processos de identificação, sendo processos naturalmente subjetivos, as suas modalidades de expressão não estão, por sua vez, sujeitas às incertezas do acaso na justa medida em que aqueles processos acontecem em contextos precisos feitos de representações, imagens e emoções, fortemente partilhadas e significantes.
Nesta perspectiva, julgo não ser novidade para ninguém que a marginalização conjugada com a penúria de recursos, designadamente económicos, sociais e culturais, introduz no espaço saturado de desigualdades novas desigualdades que fomentam estigmas sérios e múltiplos, cuja reversão pode, em circunstâncias muito especiais, apelar à libertação de uma energia emocional compensatória necessária à sentida, embora confusa, reparação de uma estima persistentemente desrespeitada, quando não violentada. Ou seja, penso que passa por este registo explicativo os fenómenos de identificação colectiva que se vão gerando nalguns subúrbios das grandes cidades europeias, onde os défices de reconhecimento se traduzem na formação, por vezes explosiva, de dinâmicas visíveis e ostensivas de oposição e conflito. O elogio da civilidade tem, naturalmente, limites. É bom ter disso consciência …
segunda-feira, março 14, 2011
GRITO e ARGUMENTO
IMPORTA UNIR E ORGANIZAR AS IMPACIÊNCIAS E CORRER COM OS BANDALHOS
A vida social vai-se corroendo porque aos políticos medíocres se junta uma gentalha técnica prostituída e a estes se associa uma comunicação social conspurcada pela sordidez da bajulação e da submissão. São medíocres os primeiros porque abdicam da nobreza moral do exercício político que são os fins e prostituem-se os segundos, aos quais se juntam os serventuários do ofício jornalístico transmudados em detentores de opinião, na justa medida em que todos estes se servem dos arcanos da decisão e do palco da divulgação políticas para favorecimentos particulares de vária ordem. E assim se vai dissolvendo a política a favor de uma economia - a que vamos tendo - que destrói premeditadamente todo e qualquer outro sistema capaz de legitimação que acione renovados sentidos para a vida social e colectiva e que seja igualmente apto de anunciar horizontes que estimulem um claro sentido às nossas obrigações como humanos e cidadãos. A crítica que não rejeita frontalmente esta fétida ordem do “monismo económico” revela, na minha opinião, uma incapacidade em compreender o essencial da “topografia” moral e ideológica que nos vai docemente entorpecendo …