quarta-feira, maio 30, 2012

É PRECISO TER LATA E NÃO TER …

 

vergonha2

O estudo que o atual Governo solicitou ao Instituto Superior Técnico sobre a avaliação do desempenho no mercado de trabalho dos adultos participantes em processos de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC), é claramente uma logração se tivermos em linha de conta a apetecida indução de se aferir (e inferir) a (e da) qualidade do referido processo na sua relação com a empregabilidade e a respetiva progressão salarial.

Como avaliador externo considero afrontoso que um Governo, em vez de explicar claramente ao povo português as razões profundas do desemprego (que tem vindo a crescer assustadoramente neste últimos anos), faça baixa política com as Novas Oportunidades (NO) procurando desqualificá-la de um modo tão grosseiro e indigno, desprezando todos(as) quantos(as) as têm servido e, sobretudo, rebaixando todos(as) aqueles(as) que, designadamente adultos, nelas se reviram e delas recobraram entusiasmos há muito perdidos.

Em vez de melhor estudar com rigor as razões das adesões massivas, das dinâmicas formativas entretanto geradas, das motivações múltiplas e diversas originadas, o Governo (na sua cegueira neoliberal) aproveita as recessões de toda a ordem (do desemprego aos salários) para, mais uma vez, de um modo falso e mesquinho, tornar individual e conjuntural o que todos sabem ser densamente estrutural. Se o Governo considera este critério de “desempenho no mercado de trabalho” valioso, não lhe resta outra alternativa que não seja a de generalizar a sua aplicação.

Mas para além de doloso, este Governo arrasta consigo um outro pecado; é só forte com os fracos e fraco (quando não cobarde) com os fortes. Não terá, com toda a certeza, coragem de embirrar com muitas das outras instituições formativas, nomeadamente universidades, que têm formado supostamente também para o dito “desemprego”. A introdução do documento é uma peça digna de ilusionismo político. Os seus artistas, com uma ligeireza argumentativa descarada, fazem desvanecer o muito que as NO e o RVCC trouxeram de bem, de bom e de positivo e celebram habilidosas prestidigitações no palco da tartufice política. Simplesmente vergonhoso.

terça-feira, maio 29, 2012

O ELOGIO ANUNCIADO DO POETA

 

1271281681_87918191_1-Fotos-de--Fotobiografia-de-Ary-dos-Santos-1271281681

 

Recordar a propósito do RVCC, advertindo da saloiice revivalista dos tempos que correm…

 

APRENDER A ESTUDAR

 

 

 

Estudar é muito importante, mas pode-se estudar de várias maneiras....

Muitas vezes estudar não é só aprender o que vem nos livros.

Estudar não é só ler nos livros que há nas escolas.

É também aprender a ser livre, sem ideias tolas.

Ler um livro é muito importante, às vezes urgente.

Mas os livros não são o bastante para a gente ser gente.

É preciso aprender a escrever, mas também a viver, mas também a sonhar.

É preciso aprender a crescer, aprender a estudar.

Aprender a crescer quer dizer: aprender a estudar, a conhecer os outros, a ajudar os outros, a viver com os outros.

E quem aprende a viver com os outros aprende sempre a viver bem consigo próprio.

Não merecer um castigo é estudar.

Estar contente consigo é estudar.

Aprender a terra, aprender o trigo e ter um amigo também é estudar.

Estudar também é repartir, também é saber dar o que a gente souber dividir para multiplicar.

Estudar é escrever um ditado sem ninguém nos ditar; e se um erro nos for apontado é sabê-lo emendar.

É preciso em vez de um tinteiro, ter uma cabeça que saiba pensar, pois, na escola da vida, primeiro está saber estudar.

Contar todas as papoilas de um trigal é a mais linda conta que se pode fazer.

Dizer apenas música, quando se ouve um pássaro, pode ser a mais bela redacção do mundo...

Estudar é muito mas pensar é tudo.

 

NOTA – Agradeço à Maria Manuela Freitas, que ontem (28.05.2012) concluiu o seu processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências de Nível Secundário (CNO da BARAFUNDA - Associação Juvenil de Cultura e Solidariedade Social) e no contexto do seu trabalho citou este poema de Ary dos Santos.

sábado, maio 26, 2012

APONTAMENTOS COM RUMO INCERTO POIS INCERTAS SÃO AS DÚVIDAS

 

educacaoadultos_190Começo por dizer que sou daqueles otimistas, que alicerçado em testemunhos intensamente vividos, entendo que o processo Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC) favorece (ou pode favorecer) a criatividade identitária. Todos nós reconhecemos que essa capacidade de nos descobrirmos está estreitamente ligada ao nível e à diversidade dos recursos de que cada um de nós dispõe ou pode dispor. Sejam eles económicos, sociais ou culturais. A fraqueza dos recursos (como toda a gente sabe, até por experiência própria) limita naturalmente a quantidade e a variedade dos si mesmos possíveis.

Esta desmultiplicação de si mesmo, apoiada por recursos suficientes, permite acrescentar novas identidades a um conjunto aberto já diversificado, tornando (assim) a estrutura das personalidades mais ricas e subtis. Pelo contrário, os que têm menos recursos percebem e sentem (com frequência) estas imposições como fatores de intensos incómodos. Qualquer processo identitário supõe distanciamentos (por vezes dolorosos) face às socializações que nos determinaram ou determinam. Esses distanciamentos pressupõem (como é fácil de admitir) pontos de apoio, horizontes de identificação possíveis e recursos adequados que os possam proporcionar.

Sou também daqueles (talvez ingénuos) que acredita que o processo de RVCC pode, neste domínio, produzir trabalho válido. E é neste sentido que vos apresentarei alguns apontamentos em que me apoiarei para alargar um olhar sobre a educação de adultos e do papel que o RVCC pode aqui assumir, na convicção de que para nos fazermos temos de duvidar de algumas certezas e (sobretudo) não recear caminhar para novos rumos, procurando as respostas mesmo que através da incerteza das próprias dúvidas.

quinta-feira, maio 17, 2012

A PRIVATIZAÇÃO DO ESTADO E O ESVAECIMENTO DA DEMOCRACIA

 

o-que-fazer-com-a-democraciaA razão deste post alicerça-se no atual modismo neoliberal escarnecedor do valor da democracia, da sua legitimidade e da sua suficiência, designadamente no que toca ao melancólico domínio do económico. No breve escrito que lhe dará corpo esgravatarei essa evidência fazendo uso de um raciocínio lógico e, de modo razoável, brigarei com a suposta superioridade advinda de uma adotada e subtil convicção que aguenta tal presunção. Se escolho o dito convicção (e não um outro qualquer sentimento mais permeável à obscuridade) é por que tenciono mover da argumentação tropelias dispensáveis à narrativa adotada.

Presumo que ninguém minimamente (d)esperto deixa de relacionar dimensões próximas tais como o bem comum, os interesses privados/públicos, a democracia, a economia e a política quando considera algum destas situações em particular. No entanto, se aquela trama concetual se apresenta calma à partida aquando do bate-boca de um qualquer destes tópicos, já a construção argumentativa que dela escapa e a exibição dos juízos valorativos que a substanciam são claramente marcadas pela conflitualidade ideológica incombinável.

Perceber como é que esse dogma venerável da doutrina neoliberal (e por isso para ele indispensável) da separação entre o estado e a economia tem feito o seu caminho de simulada irrefutabilidade constitui, por si, um exercício lógico e filosófico de desconstrução absolutamente urgente neste quadro atual historicamente crítico das sociedades. Da ideia inaugural da virtuosa e saudável concorrência à privatização do estado e ao correlativo esvaecimento da democracia (enquanto instância política) fez-se da neutralidade um fundamento vulpino do método ideológico da dita e glorificada doutrina.

Deste modo, o mimetismo liberal reconhecendo a perturbadora natureza política do estado democrático encetou há muito tempo o seu enfraquecimento presenteando melhores condições à energia do seu dogma na justa proporção que fanava à democracia a genuinidade da sua origem instituinte de ação e decisão políticas. Privatizar idealizando horizontes sem limites inspirava assim invenções que, aparentando culto pela democracia, a pudessem golpear na sua identidade básica e essencial, ou seja, de livremente definir, eleger e realizar políticas em conformidade.

Nesta circunstância, com o pretexto generoso de acautelar os interesses públicos criaram-se as regulações necessárias e com estas descobriram-se autoridades de competência assegurada para as afiançar e as levar a cabo. Afinal duas chagas se aliavam sem que ninguém desse por isso; a livre concorrência não se confinava afinal ao exercício da virtude e o estado democrático persistia no desperdício e obstinava-se numa ingerência imprópria. Agregar então à democracia gente conhecedora que à competente sagacidade reunisse o atributo de técnico não-político seria ouro sobre azul em benefício de todos. O estado democrático dava assim a sua vez, com uma deferência inusitada e perante a sua suposta ineficiência, a um estado abençoado pela regulação.

E é no apetecível reconhecimento deste estado regulador que medra como virtude democrática a neutralidade e se pespega a isenção política como condição conveniente ao exercício dessa cidadania magnânima e sem-par. Como é fácil de captar, uma democracia feita de equanimidades e desprendimentos deste jaez, revitaliza-se naturalmente perante o engasgo comparsa da política. A palavra de ordem “menos política, mais democracia” é vozeada em silêncio embora sem disfarce. A onda neoliberal elege assim as tecnocracias politicamente puras que na presença da privatização do estado têm por responsabilidade não só proteger os interesses públicos como restaurar as deformidades que do tempo democrático dimanam. Como estamos agradecidos e deles necessitados neste magano leilão dos interesses públicos nos eficientes mercados da liberalização. Por isso, bem hajam.

 

IMAGEM RETIRADA DAQUI

quinta-feira, maio 10, 2012

ADMITINDO AS DIFERENÇAS, TANTO FAZ NA PRAIA COMO NO RVCC…

 

HORIZONTESO processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC) iniciou-se em 2012 num contexto social e laboral significativamente diferente do atual, reportando em particular à taxa de desemprego de cerca 5% da altura em confronto com a sua análoga recente que se cifra hoje num valor superior a 15%. Ao convocar o olhar para estes dados pretende-se cotejar realidades e, dessa acareação, tornar mais claro o interesse que as perceções das condições de mercado apresentam enquanto fator condicionante de projetos que, pelo facto de o serem, presumem uma óbvia antecipação incessantemente idealizada.

Sempre considerei (e expresso-o aqui de um modo conscientemente simplificado) que o mérito maior do RVCC não se encerra na certificação em si mas nas múltiplas e diversas agitações que a experiência formadora (inerente ao processo) poderia (e deveria) germinar, designadamente tendo em conta a curta escolaridade da generalidade dos adultos e tudo quanto nesta condição, por conformação, se foi naturalmente incorporando. Se de início assim concebia o RVCC, ao fim destes dez anos de contacto intenso com o dispositivo, as pessoas e as suas realidades e anseios, sem receio de qualquer tipo de imprecaução, não posso deixar de ratificar (hoje) como certo esse meu pressentimento inaugural.

O adulto termina o RVCC sentindo-se com frequência (e manifestando-o por vezes de modo extasiado) uma pessoa diferente daquela que havia entrado. Em abono da verdade, outra coisa não seria de esperar, tendo mesmo em conta que muitos o iniciaram apenas com o manifesto propósito da certificação. Todavia, esclareça-se desde já que esta constatação não retira qualquer legitimidade ao intento, bem pelo contrário pelo que a seguir se procura atestar. Assim, e no desenvolvimento desta confirmação, direi que conhecer o que leva o adulto (após o processo) de diferente consigo é que interessa indagar e aclarar pela sua relevância futura. No entanto, cedendo esta empreitada para outros fôlegos, ousaria afirmar a suspeita de que as fronteiras da ambição dos adultos se foram estendendo gradativamente na justa proporção das descobertas de si que em si habitavam adormecidas e desacreditadas.

Percursos, representações, projetos e investimentos no domínio da formação, compõem um entrelaçado de aspetos que, na sua conjugação gradualmente idealizada, arquitetam as realidades nas quais se inscrevem os rumos possíveis de intensas buscas educativas ou (tão-só) de diligências formativas mais ou menos urgentes. Assim sendo, é na elasticidade deste amplo quadro de expectativas e de possibilidades que se fazem então as motivações, se praticam as atitudes de conquista da obra formativa, se individualiza a perceção da utilidade das suas dinâmicas e se refina a consciência dos recursos para o conseguir. Fazer da formatividade uma estratégia obriga a um instituir que, não desobrigando as referências do passado, as revigora nos horizontes que se futuram. Daí, as mediações, os possíveis e, sobretudo, a importância da bondade das primeiras e da inspiração imprescindível dos últimos.

Chegar ao processo apoucado pela situação de desemprego e ter como horizonte a mesmidade acrescenta às dificuldades congénitas mas desafiantes do processo uma lassidão que atrapalha e perturba o entrelaçamento anteriormente referido. Tudo aparenta menos entusiasmante e, mormente, muito mais desengraçado ao viver-se nessa fronteira que soma angústia a uma esperança tristemente abalada. A racionalidade estreita-se e com ela a energia da reinvenção enfraquece. O peso do passado endurece identidades e sitia os adquiridos, sejam eles feitos de hábitos ou de convicções. O adulto, reconhecendo-se delimitado, escusa a alegria da liberdade no exercício de uma reflexividade que ele sente historicamente marcada e condicionada pela cruciante verdade alcunhada de “falta de emprego”. Pois é. Como se diz nestas circunstâncias, não basta estar numa praia edénica fazendo férias; importa andar animado e apreciar lá estar. Admitindo as diferenças, tanto faz na praia como no RVCC.

Imagem retirada daqui

segunda-feira, maio 07, 2012

A PORRA DA VELHICE

 

Um elogio a Helena Sacadura Cabral

transferirA “velhice” pode ser uma chateação possível mas as representações sociais que a escoltam fazem dela uma “porra certa” feita de irritações numerosas, algumas delas verdadeiramente sórdidas. O paternalismo desleal e falsamente protetor que a segue (a velhice), como tal, inspira as ditas representações, enjeita nos chamados “idosos” ou “idosas” (por antecipação) potencialidades de natureza diversa e, ao mesmo tempo, reforça o seu poder insistindo (por excesso e sem tino) no peso dos seus limites, das suas doenças ou da sua morte vaticinada.

O percurso lógico começa pelo invento de traços físicos identificadores capazes de marcar as gentes, de fundamentar as diferenças e de fixar os territórios. Deste jeito, geram-se abandonos e favorecem-se exclusões ou inventam-se negócios e criam-se acolhimentos. Em comum, oferecem-se não-lugares, uns formados de perdas inteiras, outros de privações essenciais. Anula-se a importância, golpeia-se a estima e ironiza-se a sexualidade. Propõe-se, no fundamental, em lume brando, uma morte ainda em vida.

Todavia, há sempre quem resista e, neste universo de oponentes, alguns ditos “velhos” ou “velhas” desviantes feitos(as) de tremendas descrenças e enérgicas teimosias. Ao longo da vida, estes(as) instruíram-se (naturalmente) na deserção a muitas normas instituídas e às bondades das categorias em que aquelas sempre os(as) aliciaram e hoje, caprichosamente, julgam ter chegado o tempo certo de os(as) capturar. No entanto, os(as) resistentes aprenderam, como sempre, por manha, habilidade ou inteligência, a navegar em contracorrente nas enxurradas dos binários da simplificação e da classificação com que se formatam as vidas e as existências de muitos(as) e azarados(as) imprevidentes.

Fora assim do enxurro, os(as) desviantes avistam o excêntrico de margens imprecisas e tropeçam em horizontes provavelmente mais salubres e reavivados de possibilidades. Para eles(as), as evidências deixam de o ser na perplexidade que alcançam e no pensamento que os(as) inquieta no estímulo dos progressivos e contínuos achados. Descobrem então que a vida que buscam não está do outro lado da norma mas sim numa reinvenção que rejeita a facilidade da mera e simples oposição à norma. Eles(as) sabem, melhor que ninguém, que envelhecer … lá terá que ser. Contudo, não pelas categorias sociais que eles(as) percebem estranhas e que, pela sua estranheza, mais espontaneamente podem entranhar. Decidem, assim, não murchar antes do tempo, de um tempo que a cada um deles(as) pertence e que a cada um(a) definitivamente cumpre viver.

sábado, maio 05, 2012

A FOLHA BRANCA QUE NÃO ESTÁ EM BRANCO

 

Texto reformulado

Ao longo deste tempo, na qualidade de avaliador externo, tive oportunidade de ler variadíssimas histórias de vida. Percebe-se que se observa o passado com as referências de hoje e com representações diferentes daquelas que, nesse tempo, orientaram as leituras e guiaram as interpretações das vivências que agora se procuram (de novo) situar e (re)significar.

folha de papel homepen

O peso do passado que se impõe, a convenção que sempre dificulta e a memória endurecida por dizer o dito vezes sem conta, tornam-se embaraços às exigências da reflexão que tem por missão reconstruir, uma vez mais, a história do vivido. As pertenças, as particularidades e os pressupostos, nem sempre claros, marcam a subtileza da reinvenção do relato. A última das compreensões não dispensa, no seu deslizar vacilante, os entendimentos que a precederam num processo reconhecidamente penoso pela insatisfação do que, no íntimo, se mostra inquietante e duvidoso.

A historicidade que situa o testemunho e a reflexão que a completa (por correções e aclaramentos) fazem-se (assim) num movimento de leituras e juízos que a narrativa que se conta procura articular suprimindo vazios e discrepâncias que atrapalham a limpidez da história biográfica. E é no preciso momento da escrita que a dificuldade de escrever numa folha de papel que não está em branco, a consciência desperta para a riqueza do que é perplexo, equívoco e maleável.

É esse o instante inevitável da (re)elaboração e da (re)significação que, paradoxalmente, nos apresenta e exibe hoje o que somos ou o que, não sendo, desejamos ou procuramos ser, independentemente das histórias já escritas na folha branca onde escrevemos.

quinta-feira, maio 03, 2012

OS COMÍCIOS DO PINGO DOCE OU O POPULISMO NO SEU MELHOR

 

1[8]Problematizar (trabalhando possibilidades outras) anuncia a todo o tempo perplexidades, busca continuadamente formas novas de olhar os problemas e desperta sem fim exercícios de pensamento que moldam leituras desafiadoras a naturalizações que, embaraçando a tentativa, estimulam o seu propósito. Estranhar o habitual e permitir a familiaridade do desconhecido requer uma disponibilidade treinada (aberta e diligente) na tarefa sempre árdua de divisar diferenças (presentes e ausentes) nos movimentos silenciosos das diferenciações articuladas que sossegam enrijadas no leito dos múltiplos interesses estabelecidos.

Para quem não alenta nem se fundamenta em rebanhos de espécie duvidosa, as demonstrações populares de desmedido espavento são sempre vistas com o olhar crítico da tolerância exigente. As evidências da numerosidade arrastam consigo (vezes sem conta) a possibilidade de achacados populismos que se corporizam nas imperfeições civilizacionais, quando não nas penúrias de toda a ordem, nas desesperanças da vida ou em crises presentes de futuros adiados. Se alguns políticos (ou políticas) exploram tais particularidades, os mercados possuem delas um saber feito pelas agulhas e linhas com que se cosem.

Assim pensando, diria que a soberania de um qualquer populismo (político ou mercantil), numa sociedade tutelada por culturas de propaganda, nutre-se da exaltação de consumismos diversos com a cumplicidade sempre pronta e enérgica dos enredos mediáticos habilmente dóceis e (sobretudo) artificiosamente criativos. O irresistível anunciado, a necessidade fabricada, o desassossego excitado, tornam voluntário um gesto que (na sombra) embala o humano que nele se deixa adormecer. A necessidade desobriga-se assim da liberdade e da dignidade e amamenta o “kitsch” ardiloso que se alastra transversalmente por campos dispersos, todos eles submetidos (hoje, mais do que nunca) à lógica mercantil que nos incompleta.

A campanha do Pingo Doce, vale o que vale mas vale, no essencial, por que se entranha num espécime de populismo universalizado que, por muitas cambalhotas argumentativas que se deem, não deixa de constituir apenas mais uma forma (manhosa e, talvez por isso, rentável) de desumanização e, já agora, de revivalismo ideológico. O populismo sempre se revelou como meio expedito e despudorado de conservação ou de conquistas de poder(es). Neste particular, qualquer pessoa de bom senso não pode deixar de reconhecer que o Pingo Doce não se quis prestar à virtude da generosidade ou de uma outra qualquer grandeza humana ou social. O Pingo Doce foi apenas e simplesmente oportunista. Fez marketing, fez negócio e não deixou de fazer política. O 1º de Maio era a data conveniente para a convergência de tantos fazeres sem causa moral alguma. O populismo no seu melhor.

Imagem retirada DAQUI