quinta-feira, junho 28, 2012

OS MEDIA NÃO SERÃO HOJE UM PROBLEMA DA E PARA A DEMOCRACIA?

 

36.0.posConfesso que já não sei para onde me virar neste tempo de um jornalismo tão bravateado quanto intimidado. Se o campo político o constrange, os interesses empresariais enquadram-no. Neste afetuoso bambolear o poder mediático vai-se instituindo. Sintomas seriamente inquietantes por anunciarem uma crise abominosa por intrínseca na sua natureza. No fundo, sinais de uma crise de legitimidade do jornalismo e, por rastejamento, dos próprios jornalistas.

O poder mediático surripia ao jornalismo, mas não tanto aos jornalistas, a desejável e necessária discrição, acomodando-se matreiro no centro do debate e, manhosamente, oferecendo palco aos seus artistas. O vedetismo, deste modo animado e requerido, convoca a distorção natural de fronteiras. A opinião e o comentário confundem-se e entranham-se na competição feita de sombrias manipulações e grosseiros compadrios.

Igualmente, e com uma docilidade arrepiante, os valores éticos submetem-se às habilidades do jogo das concorrências. As tragédias são miseravelmente exploradas, a agitação das almas avivadas e o folclore mediático exponenciado. A busca das audiências faz-se então meta, não dispensando com uma frequência inusitada, os lamentáveis recursos à patética dramatização e à torpe emoção. A informação incapaz de comunicar, transforma-se numa mera mercadoria desprezando a sua utilidade histórica na satisfação de necessidades sociais e coletivas.

Posterga-se, deste modo, o respeito pela liberdade de informar e encobre-se a verdade no disfarce de uma aparência arquitetada objetividade. Os limites da informação, da adulteração e da propaganda dissipam-se pela sua incomodidade e impedimento aos intentos indizíveis. O rigor e o exato dão lugar à inverdade (ou mesmo à mentira), ao embuste e ao espetáculo. Os factos, as opiniões e os comentários sucedem-se sem critério. A profissão corrompe-se ao desnudar os acontecimentos do seu significado e importância social e político.

O apelo à deontologia torna-se mera ingenuidade ou (tão-só) bandeira estratégica e cínica de quem pretende atrás dela se acobertar. Os valores da neutralidade, da conformidade e da objetividade são tão calcados quanto mais anunciados. A má consciência, servindo-se da nobreza das palavras, procura que estas cumpram a função de ocultação do gesto indevido. Os media, de instrumentos essenciais à democracia, tornam-se assim, muito provavelmente, um problema da e para a própria democracia. A sociedade da informação e o novo capitalismo têm muito que se lhe diga. O exercício do jornalismo sério sai prejudicado e a democracia profundamente lesada. A vigilância crítica e a denúncia permanente constituem-se (assim) em deveres inadiáveis de cidadania. Exercitemos então…

sexta-feira, junho 22, 2012

… COM OS “TOMATINHOS” NO LUGAR

 

CARLOS MAGNOO povo mais atento ao alvoroço entre o proeminente Relvas e o jornal Público, mas igualmente cético em relação à serventia da Entidade Reguladora para a Comunicação Social – ERC, nada aguardava de quatro dos seus elementos, dois deles servidores políticos do PSD e os outros dois do PS. A expectativa da imaginada dúvida estanciava, então, na suposta independência do senhor Presidente, de nome Carlos Magno.

Deste modo, neste antecipado quadro de empate instituído, nada de especial se esperava a não ser a posição do senhor Presidente. Colado à súcia do PSD ou encostado à conveniência ardilosa do PS, era apenas uma curiosidade insignificante e politiqueira. O que importava realmente saber não era propriamente a decisão – pela súcia ou pela conveniência – mas qual seria o teor da astúcia do (seu) fundamento. Carlos Magno não dececionou. A sua habilidade em se embuçar atrás das palavras é por de mais reconhecida.

Inaceitável significa, penso eu, que não se pode aceitar, que é inadmissível ou mesmo intolerável. Ilícito, significa (tão-só) que é contrário à lei, proibido ou mesmo ilegítimo. Dizer que é inaceitável mas não é ilícito, traduz à partida que a lei não interdita o inaceitável e, por desguarnecimento, faculta (com a sua taciturnidade) o insustentável. Em jeito de desfecho, os “relvas políticos” deste pobre País podem ser execráveis desde que dominem (a preceito) a languidez das fronteiras entre ilícito e o inaceitável e, sobretudo, a plasticidade mimética dos seus intérpretes.

Os mercados da economia e da política (sim, da política), nos tempos que correm, inspiram copulados um processo escabroso (inaceitável mas lícito) de mercadorização claustrofóbica das sociedades. No nosso País, o chico espertismo ativa, com uma particular sagacidade, a panelinha de um certo jornalismo ordinário que faz da chulice seu modo de vida e da informação uma mera e útil mercadoria. De facto, o pensamento e a consciência não definem, por si, a grandeza do homem. A superioridade deste exige mais. Exige que o pensamento e a consciência, enquanto meios, saibam criar e realizar valor(es )… com os “tomatinhos” no lugar.

quinta-feira, junho 21, 2012

EMBORA APÁTRIDA, PORTUGAL QUE GANHE

 

4485222_700b_thumb[2]A ocorrência do futebol limitado à fronteira dos clubismos é bem diferente do acontecimento-futebol forrado com a camisola das quinas. Os adeptos não são exatamente os mesmos, os de sempre tornam-se diferentes, as identificações ganham novos rumos e os discursos patéticos e ferrenhos daquele primeiro universo dão lugar à vivacidade dos grotescos nacionalismos deste último.

Se algum clube da nossa paróquia ganhar uma competição internacional, o suposto orgulho nacional (que ferverosamente escolta o “clube da nação”) parece volatilizar-se em três tempos. A parcela aparcela e desfaz a identificação fundadora do orgulho que se revira no seu contrário. O argumento da paixão (que é o futebol, diz-se) tudo explica, justifica e assim (silenciosamente) autoriza os pensantes a adormentarem a exigência da relação coerente. Tudo bem até aqui, não fosse a desproporção do ilogismo.

Tudo isto, porquê? Ouvindo o previsível Paulo Bento, em resposta aos seus supostos maledicentes, sinto-me (assumo) um apatriota por exclusão. O dizer absoluto de Paulo Bento declina a impassibilidade uma vez que no lugar-comum por ele vozeado parece não haver oportunidade para a distância. No fulgor mediático do delírio patriótico, acicatado (digo eu) por enredos sombrios e rivalidades confinantes, Paulo Bento parece igualmente reclamar (pela veemência e conteúdo do seu discurso) que se tome partido. Ou se está a favor ou se está contra a seleção, como se seleção, país e nação fossem simples duplicatas.

A simplificação cénica da sua suposta modéstia, a argumentação exacerbada da trivialidade exposta e o descomedimento de uma reiterada coragem advinda do seu elogiado (mas discutível) pragmatismo constituem alguns dos ingredientes que dão à comédia do comentário jornalístico e mediático um (in)devido espaço e uma aparente credibilidade aos seus principais atores (ou detratores, não sei bem), construindo-se (assim) a lastimável comicidade dos grandes efeitos desabrochados de pequenas e torpes causas. Para tal, conta-se com a competência dos comediantes. Enfim, o óbvio; o mundo do futebol (sobretudo o que ao redor dele gravita) não pode ser melhor do que a sociedade em que se vive. Uma evidência…

segunda-feira, junho 18, 2012

A INSCIÊNCIA PEDAGÓGICA DA COMPETIÇÃO

 

A cultura da competição desdenha a cidadania democrática e, por congraçamento, atravanca a educação crítica, participativa e argumentativa. Daí, as loas a uma educação afinada às mendicâncias concretas da casta económica e aos alcances que as acautelem. Assim, ideologicamente e em posição hegemónica, faz daquela a educação imperativa e, por oposição, desfeiteia uma outra qualquer pelo atribuído e imaginário diletantismo e facilitismo.

A democratização social e económica, não isentando a escola, mostra que esta exibe, ante tal intento, a sua reconhecida e confessada insuficiência. A possível ingenuidade na falsa crença incorpora simplismo onde importaria inscrever rigor, ousadia e comprometimento, ou seja, um empenhamento arraigado na complexidade relacional do social e do humano e decididamente aventurado no seu apaziguamento.

A prevalência do económico sobre o pedagógico fabula e pavoneia uma outra categoria de rigor, cujo ofício não é o do apaziguamento mas o de aclimar o conflito da artificiosa diferenciação. Receando a insubordinação, a ordem deita então mão à burocracia, aos exames e a outros julgamentos, solicitando que aquela vigie a disciplina e estas moderem o essencial irrevelável da arbitrariedade nela hospedada.

A escola, a educação, pode não transformar o social; o que pode e deve é opor-se à sujeição da divisão que multiplica a iniquidade. A neutralidade aduzida não convence ninguém mas muitos dela se servem para nela acobertarem sobressaltos e espantarem responsabilidades e cidadanias. Não há futuros traçados. Existem apenas possibilidades de dar uma outra forma à condução do nosso viver. Com mais justiça e humanidade, por um mundo mais solidário.

Imagem retirada MURAL DOS ESCRITORES

quinta-feira, junho 14, 2012

DEIXE EM PAZ O SEXO DOS OUTROS, SENHOR NARCISO

 

c7a77828A referência presunçosa ou o proveito ideológico à divisa de uma sexualidade normal eflui de uma suposta e genuína ideia certa de Natureza Humana. Desta segurança indubitável (convicta ou farsante) segrega-se a (pre)disposição profícua da contranaturalidade, esgarçada pela tradição judaico-cristã através do pecado e da moral por este nomeada. Será que o animal, dado como exemplo, dá-nos a lição da união devida e conduz-nos (superiormente) à recusa da indecorosa perversão que é a homossexualidade?

Em tempos, não muito recuados, o Direito, de braços curtos e cabeça definhada, procurava assim abarcar e pensar o homem constrangido à tal natureza decretada, inventando os desvios e as palavras que teriam a função de apontar e chibar os pecantes e os pervertidos que, por doença ou crime (qualquer outra alternativa não se pressentia), violavam as leis da natureza. Mas surpresa das surpresas a dita Natureza, pela sua grandeza ontológica e relacional, não se deixou agarrar por tão tacanhos braços e, sobretudo, socializar-se por definitivas injunções de acefalópodes que traem a inteligência da sua própria natureza.

Narciso Mota ainda está, na melhor das cenas, no patológico do patológico no que toca à homossexualidade, pese embora se deva reconhecer a sua louvável benignidade social-democrata quando sugere a cura mas já não reclama a prisão. Todavia, narcisos há muitos, designadamente no palco político dos rústicos narcisismos em que os próprios se mostram em desfavor da sua função de representar e do respeito que devem aos representados, a todos e não apenas a uns poucos.

Pois bem, senhor Narciso. Se me permite, dir-lhe-ei que desde o tempo de Freud que múltiplos académicos e especialistas vêm mostrando à biologia, à moral e à religião que a sexualidade humana é mesmo perversa – os conceitos têm uma genealogia que importa atender – na exata medida que a pulsão sexual não tem um objeto específico, único e muito menos previamente determinado sob o ponto de vista biológico. A homossexualidade (tal como a heterossexualidade) constitui uma postura libidinal identificatória e instituinte de uma historicidade própria e indestrutivelmente legítima. Senhor Narciso, com as responsabilidades que assume, traga para o debate público as verdadeiras questões éticas e sociais e deixe em paz o sexo dos outros.

sábado, junho 09, 2012

“CHEGO A CASA, TOMO BANHO, SOU OUTRA PESSOA”

 

Título retirado de um testemunho de um operário, inserido no artigo em apreço

operarios__Tarsila_thumb[1]O sociólogo Bruno Monteiro, no Le Monde Diplomatique (edição portuguesa do corrente mês), num artigo intitulado “Armar estrondo”, escreve a respeito da forma como os jovens, enquanto novos operários, se apresentam perante a comunidade na sua relação com as marcas sociais por eles supostamente vividas “de invisibilização, inferiorização e desqualificação” e que (experiencialmente) tramam os seus sentimentos enquanto pessoas. Trata-se de uma temática relevante com múltiplos desenvolvimentos e ramificações possíveis.

Nele se referem os tópicos das marcas de classe, dos sentimentos de inferioridade e do valor funcional das aparências, não ignorando (como é natural) o quadro social e cultural das seduções, das incitações e dos arrebatamentos atuais na sua relação com o “consumo, a novidade e a aparência”, designadamente junto dos jovens operários. Neste entrelaçado de tópicos, procura-se suscitar indicações para a compreensão de comportamentos (discursivos e de atuação) através de “usos diferenciados e diferenciadores” de estratégias por parte daqueles que não se apaziguam à tradicionalidade da envolvência oficinal.

Ao espaço do trabalho opõe-se, em jeito de rutura, um outro que (por rivalidade) desobriga e liberta, todavia pelo conflito e não pela afirmação, o que (como é óbvio) importa diferençar. Neste se intenta então a reparação “por práticas derrogatórias dos vestígios físicos e estatutários impostos pelo trabalho fabril sobre a carne”. Com a permanência da revolta sempre inquieta, os “danos físicos e psicológicos da fábrica” fazem-se sentir suscitando a indispensável regeneração de um corpo e de um espírito “maculado” pelo mundo do trabalho. Inventam-se, a partir daqui, “tentativas de inversão ou de suspensão da dominação” de forma a encobrir (em público) “os sinais caraterísticos da condição operária”.

Na emergência da reinvenção a fazer-se (e sentida como essencial), ganham maneiras imaginativas as “formas de autoapresentação” percebendo-se da importância que “os gestos, as poses ou as palavras” têm “como sinais de reconhecimento e pretensão”. No entanto, a naturalidade (sobrepondo-se à teatralidade encenada) deixa por vezes escapar algumas revelações que, “despidas de intenções deliberadas e programadas”, possibilitam a crueza dos “veredictos sociais, (dos) julgamentos sobre a verdade de alguém e, (muito provavelmente de) uma sentença sobre o seu destino”.

É desta (e nesta) permanente disputa (onde o ser se busca no parecer e se soltam as imagens, os investimentos e os eufemismos) que o ter procura (aí, na agitação dessa desordem) um estatuto (in)devido. Surgem assim as “práticas de estilização dos jovens operários” num mapa diverso que se alarga em tentativas de reinvenções admitidas, sejam elas “exageradas”, “falsificadas” ou “desgraciosas”. Importa aparecer, ser visto, ser reconhecido, sair do anonimato da fábrica e da sua severa condição, um propósito (aliás) bem legítimo de se sentir considerado.

Ao invés, há quem adote a inferioridade social como destino, construindo (através dessa disposição ou aculturação) uma traiçoeira naturalização que, para além de sustentar o surgimento de quadros relacionais de indiferença e de desqualificação, acrescenta à realidade o incremento equivocado de “sentimentos de auto irrisão e autopunição”. Os sinais visíveis daí decorrentes, sejam eles de embaraço, de desconforto ou de inadaptação, acabam assim por confirmar as representações de inabilidade e de insociabilidade “que antecipadamente possam ter sido criadas sobre eles”.

Muitas pistas de reflexão se colocam através do texto aqui referido. O problema da autoapresentação como mediação é um deles e com a convocação deste muitos outros são suscitados, tais como as questões da imagem, da afirmação e da legítima consideração social. Vive-se hoje um tempo de escolaridades prolongadas e de tardias entradas no mundo (da fábrica e) do trabalho. Habita-se uma sociedade de forte apelo consumista, onde o consumo (também) cumpre a sua força e presença sublimativa. As tentativas de estilização das vidas e dos sentimentos constituem, nesta trama, realidades possíveis de “resistência à desqualificação simbólica”. Sem ambição de superiores juízos de valor ou políticos, a questão terminante mantém-se; como lidar (valorizando) esta condição operária, ou melhor, a condição operária sentida como inferior.

sexta-feira, junho 08, 2012

A PACIÊNCIA É UM RECURSO E, COMO TAL, TAMBÉM SE ESGOTA

 

DemocraciaOs valores democráticos não se inscrevem apenas nesta ou naquela democracia nem tão pouco na ritualização dos seus discursos laudatórios. Mesmo no abstrato, direi que as democracias valem pela democraticidade que lhes dá vida e, nesta perspetiva, as suas legitimidades devem reconhecer-se na materialização dessa magna exigência. A minha profunda convicção, arreigada nesta simples ideia, leva-me a manifestar com todo o vigor que não sou, não quero ser e tudo farei para que muitos outros não se sintam no dever moral de serem democratas nesta forma política obscena, viciosa e espessamente mercantilizada.

Leva-se os cidadãos a expressar vontades e intenções para de imediato, através da mediação de múltiplas representatividades habilidosamente formalizadas, desdenharem estas a favor de um outro tipo de lógicas e de interesses que, de modo resvaladiço, escapam à instigação de um imperioso escrutínio público informado e esclarecido. Quem é democrata sabe que a fertilidade da democracia não carece de mascaradas técnicas de reprodução artificial, empregando (é o termo) barrigas de aluguer que, sem qualquer recato, petulante e impropriamente aparecem a reclamar, como suas, legitimidades em si (e por si) irrefragáveis.

Fazendo da economia coisa apolítica, o segredo exibido converte assim vontades expressas em sarcásticas sujeições lógicas e, matreiro, o segredo descobre ainda e enaltece depois paciências e compreensões umbráticas tudo em nome do povo, não do seu presente (claro) mas de um futuro (in)certo que há de vir. No fundo, são estas as singelezas (entre outras) do chamado Estado democrático moderno onde as numerosas máquinas que fazem política, apadrinhadas pelo conluio dos seus amigáveis aparelhos partidários, esgotam e ensecam as democraticidades, reinventando manipulações e expropriando cidadanias.

Assim, meus amigos, se esta democracia não se ajusta, importa esperar (sem espera, como diria Derrida) por uma outra, embargando a que, como a atual, pelas razões experienciadas, não serve. Fazer acontecer esta interrupção é uma necessidade, é uma urgência, é um ditame que se espera pela mobilização ativa e não expectante de um povo que quer (e luta por ter) um futuro, apropriando-se da sua marcha, construindo nele uma nova ideia de justiça e de democracia. Talvez revolucionando a democracia e, por que não, a própria ideia de revolução, lembrando sempre que as democracias valem pela democraticidade que lhes dá vida e lhes confere legitimidade e dignidade.

quarta-feira, junho 06, 2012

O BIG BROTHER EDUCATIVO

 

Uma omnipresença autoritária e controladora mas encoberta e biliosa…

Sobre o Despacho normativo n.º 13-A/2012

Despacho normativo que concretiza os princípios consagrados no regime de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos públicos da educação pré -escolar e dos ensinos básico e secundário.

marioneteComeço por afiançar com a toda (a minha) certeza pessoal que transcorre de uma vida profissional atribulada (mas inteira) dedicada ao ensino (e à sua causa) que os que mais se inquietam com os alunos são, sem qualquer  vacilação, os seus pais e as suas famílias (embora nem todos ou todas), a seguir sobressaem os professores e as professoras (igualmente nem todos ou todas) e, no fim da fila, espreitando em ziguezagues o espetáculo dos deslizes e das fendas, os políticos (e estes, infelizmente, quase todos) acompanhados pelos ecos múltiplos dos inúmeros bonecos mediáticos que nos ocupam a casa em forma de gente douta e experimentada.

Sobre o anúncio (em jeito de pregão) do presente despacho que “visa estabelecer os mecanismos de exercício da autonomia pedagógica e organizativa de cada escola” não posso deixar de rememorar (por precaução) que, ao longo da minha alongada cidadania profissional, a contenda da autonomia foi sempre, após o 25 de Abril, tema obrigatório (logo, recorrente) das agendas políticas da trintena de ministros da educação que com ele (o tema) se entretiveram e divertidamente nos enfadaram. Logo, não estamos perante qualquer novidade e, justiça seja feita, se melhor atendermos à expressão colada no despacho agora apresentado percebe-se que não se sustenta qualquer estranha inovação mas tão-só a jactância de precisar (como convém à metáfora do estilizado rigor) os mecanismos do seu exercício.

Em tempo de vacas magras, a retórica do “incremento de autonomia” converte-se em arte de logração ao reclamar autoritariamente que “cada escola se (deve tornar) mais exigente nas suas decisões e (estabelecer) um forte compromisso de responsabilização pelas opções tomadas e pelos resultados obtidos”. O discurso soa bem e melhor ressoa quanto menos se interpela a natureza das decisões, das opções tomadas e dos resultados que se procuram. Contudo, o “forte compromisso de responsabilização” sempre vai advertindo, por solidariedade com os incautos, que os tais imperativos de “concretização da autonomia pedagógica e organizativa” exigem “decisões sustentadas pela escola”, “condições por parte desta para as concretizar” e, como não podia deixar de ser, “recursos e uma boa gestão destes”.

Para qualquer pessoa que disponibilize os seus mínimos (de seriedade, de atenção, de conhecimento e de empenhamento intelectual) percebe que o traje que a escola é convidada a vestir não é propriamente um fato-de-ver-a-Deus mas (apenas e tão-só) um outro indumento padronizado angariado num qualquer mercado a retalho (vulgo e sombrio outlet). De uma só vez – pensam os nossos presumidos e inteligentes governantes – papa-se uma cambada de idiotas, uns que querem ver os filhos doutores, outros que em vez de trabalharem recreiam-se nas pedagogias. Deste modo e doravante, a escola para mostrar a sua habilidade e não expor a sua inépcia, vai ter de se adaptar ao generoso e sublime fato e com ele mascarado serigaitar aos “ritmos próprios no desenvolvimento (possível) do seu trabalho”.

Mas a rábula não tem fim e vai continuar. Crato e Companhia querem (com esta magnânima visão da escola do futuro) resguardar “a necessária unidade a nível nacional (incentivando) a liberdade das escolas para concretizar a promoção do sucesso escolar dos alunos e dos objetivos educacionais fundamentais”. Crato e Companhia mostram assim que fizeram o que deviam ter feito e as consequências terão de se declarar, aos olhos dos mais distraídos, naturalmente óbvias; o insucesso futuro dos nossos jovens será da responsabilidade das escolas, dos professores e, sobretudo, dos alunos e das famílias. Aliás, na linha mais geral das cabeças destes lacaios políticos (e dos interesses que servilmente prestam) emerge como tonalidade ideológica a insidiosa e cautelar culpabilização individual escoltada pela correlativa desresponsabilização política e social daí advinda. O desempregado se o é, é porque não tem formação, não é empreendedor ou não sabe (ou não quer) aproveitar as oportunidades. O descarte neoliberal é tão simples quanto isto...

Prometendo voltar a este tema esgravatando as normas da peça em apreço, conteúdo esse que verdadeiramente lhe confere significado, finalizo expressando convictamente que, ao contrário do que afirmam Crato e Companhia, os órgãos de administração e gestão das escolas não veem, com este despacho, reforçada a sua autonomia. Assumem (isso sim) responsabilidades acrescidas que não lhes pertencem nas condições em que aquelas são impostas e, sobretudo, transfiguram-se em comoventes marionetas deste esquema neoliberal que nos últimos anos tanto tem agredido o campo público da educação. Mas não haja ilusões; a agressão à educação é deliberada por que servem os interesses estratégicos de quem tem toda a conveniência em aprofundar e reforçar a dualização social (pre)dominante. Não cuidará com certeza dos interesses e das necessidades de quem nessa dualização não se revê e contra ela reage e, em coerência, contra ela luta.