quinta-feira, agosto 23, 2012

OS DEUSES JÁ SE FORAM

 

auguste-rodin-iris-e28093-mensageira-dos-deuses-1895Nos momentos em que sentimos a necessidade de alcançar o passado predispomo-nos natural e candidamente à cultura misteriosa do sensível. A descoberta de impressões, que se protegem atrás das memórias desencarnadas pela persistência das narrativas repisadas, funda uma singular devassa ao mundo dos segredos guardados que silenciosamente em nós repousam. Revolver o íntimo sem receio do que se resguarda nas profundezas dos nossos corações é recriar um melancólico regresso ao tempo em que os nossos pais eram deuses e as suas verdades nos davam em absoluto um sentido protegido do mundo.

Era o tempo que pouco se desvendava em dissentimento ao muito que se amestrava graças às certezas altivas dos pais e dos avós, bem escoltados pela férula temerosa dos professores e pelas reprimendas celestiais dos padres e dos seus indiferenciados mas indefetíveis embaixadores. Família, Escola e Igreja conluiavam e acertavam através de uma moral comum uma invenção severa do Bem e do Mal. Deste modo, na intimidade desta ordem estabelecida, a singularidade possível diferia-se para mais tarde, para um outro tempo de maturação e de fúria que em harmonia educavam o orgulho e a liberdade da sua rebeldia.

Inevitavelmente crescemos, por vezes revoltos sem saber bem com quem e por quê. Apenas nos fomos (e vamos) apercebendo que os pais parecem cada vez mais pequenos até se tornarem iguais a tantos outros pais. Os professores tornaram-se (ou tornam-se aos nossos olhos e à medida que o tempo passa) simples e dóceis pessoas e os padres – esses - figuras vulgares ou até protagonistas injustificados. Começou (ou começa então) a viagem das aventuras e das peripécias que fizeram (ou fazem) a experiência incomum e indefinida da nossa liberdade e responsabilidade. Voltando muito atrás ou mesmo recomeçando quase de novo, perto do nada e, seguramente, na companhia da nossa forçosa mas vital solidão.

Os argumentos frios e precisos da razão disputaram (ou disputam) assim com as imagens e as emoções a construção de nós mesmos no manente juízo do apreço em que nos tínhamos (ou temos). O tempo mudou e não pára de mudar e com ele todos nós vamos mudando. De lugares, do sentido que atribuímos a esses lugares e, sobretudo, das emoções que acompanham esses movimentos de mudança. Entregues a nós próprios e à nossa liberdade sentimo-nos sempre na necessidade de encontrar uma ciência particular para moderar as emoções libertadoras que nos incitam a ser nesses cursos de transformação. No entanto, sem pressas de identificações favoráveis a subordinações acomodadas de superfície. A reinvenção de nós próprios, seja ela qual for, não dispensa uma bússola feita de uma engenharia capaz de congraçar as lógicas da reflexão e da identidade. No essencial, tendo por projeto de assim podermos humanamente evitar delegar nos outros o completo encargo de esclarecer a nossa própria existência.

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segunda-feira, agosto 13, 2012

CUIDAR A LIBERDADE SEM TEMOR…

 

POEMA-DA-LIBERDADENão há química que amigue de modo prolongado a liberdade e o poder. A paz entre ambos perdura o tempo de descanso necessário, o bastante para a relação se perder nos perigos que consente. Em conformidade, ao olhar supino do poder reage de pronto a resistência com o seu jeito hábil e insolente. As relações de poder jamais se imortalizam.

Deste modo, à folga da paz sobrevém a contínua fadiga de uma obstinada luta, sempre aberta, entre as forças que brigam. A provisoriedade da harmonia, ao contrário do que aparente, exibe a verdade ininterrupta da faina política insculpida no conjunto da existência social. Mais do que deslindar o que somos, interessa enjeitar o que não se quer ser por ordem dos tempos.

Da consciência do padrão, da norma e da disciplina decretados à militância consequente dos juízos que se formam, aí radica a liberdade que a determinação, a vontade e a coragem vivificam. Sem pastorícias, confissões ou relatórios de almas desprecatadas ou, ainda, de outros acrescentos vanguardeiros de saberes incertos (mas legitimados) dedicados ao amparo conformado das subjetividades e das individualidades.

Ao contrário, importa ocasionar e diligenciar saberes de incompatibilidade fundada na sagaz recusa ao poder, captando que este antes de ser repressivo é fecundante e persuasivo. Inicie-se por suspeitar dos lugares-comuns, das verdades repetidas e das obviedades sombrias, tendo presente como nascente primeira dos direitos os que nunca (e em momento algum) se poderão ceder; os direitos à vida, à liberdade e à procura da felicidade.

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sábado, agosto 11, 2012

O MONÓLOGO DA CEGUEIRA ECONÓMICA

 

nl17Ao folhear o “Le Monde diplomatique” (Edição Portuguesa) de agosto de 2012, dele anoto três simples apontamentos de uns tantos escritos distintos.

1ª nota (A lei dos bandidos)

Serge Halimi alude em artigo que, todos os dias, o nível da Libor é estipulado por uma vintena de grandes estabelecimentos financeiros e que este ajusta o padrão a transações num montante de 800 biliões de dólares, empreendidas particularmente no mercado dos produtos derivados, acrescentando: “Os montantes em causa são de tal forma faraónicos que encorajam a imprensa não financeira a concentrar sua atenção em pecadilhos, mas de escala humana, dos pais que recebem abonos de família sem garantirem a presença dos filhos na escola aos assalariados gregos que completam os seus magros rendimentos arranjando trabalho não declarado. Para estes está reservada a ira dos governos e do Banco Central Europeu”.

Pois então, não mandar os filhos à escola e ainda por cima acumulares? Dá de frosques e porta-te mas é bem…

2ª nota (Universidades, 20 anos depois)

Sandra Monteiro menciona, por sua vez, que a composição da estrutura social do ensino superior tem vindo a sofrer, nos últimos anos, uma forte elitização. E os números avançados são (por si) elucidativos. Assim, 9, 9% da população portuguesa de rendimentos mais elevados, em 1994/95, ocupava 14, 4% dos lugares. Em 2010/11, essa percentagem subiu para 38,2%. Por outro lado, no que concerne à classe média, constata-se o inverso; em 2004 eram oriundos dessa camada 74,1% dos estudantes, em 2010 essa percentagem baixa para 43,8%.

Olha, olha! Escola para todos? Não querias mais nada? Vai mas é trabalhar, malandro, para saberes o que é a vida…

3ª nota (Jovens jornalistas: entre o sonho e desesperança)

Liliana Pacheco ao debruçar-se sobre o desemprego e a precariedade dos jovens jornalistas também nos dá alguns números esclarecedores. Dá-nos a conhecer sobre o sector dos media em Portugal que, entre 2008 e 2011, o mercado de publicidade no nosso país perdeu quase 200 milhões de euros, o que significa uma quebra (nesse período) de 26%. Desta contração, estima-se que, entre 2006 e 2010, as empresas dos media em Portugal tenham perdido cerca de 500 trabalhadores. Tendo presente estes números e um quadro progressivo “de concentração de cada vez mais órgãos de comunicação em cada vez menos proprietários”, é fácil de perceber que é complicado, no plano deontológico, um jornalista argumentar com quem por esses deveres e regras não se governa. Mais fácil ainda será entender que a dificuldade do jornalista cresce à medida da precariedade do seu vínculo laboral.

Em jeito de síntese, vale a pena citar a última das suas considerações:

Se a precariedade se constitui como um problema grave nos nossos modelos de trabalho e em todas as profissões, no jornalismo acarreta ainda maiores consequências, já que põe em causa o princípio da liberdade de imprensa. Esta não deve ser encarada como um privilégio dos jornalistas, mas como um meio indispensável à garantia da liberdade de expressão e do direito dos cidadãos a uma informação livre e independente”.

Atina-te, ó palerma. Liberdades e direitos têm preço. Se não sabias, ficas a saber. Põe-te a milhas e deixa-te de retóricas…

Como é óbvio, muitas outras notas poderiam ser acrescentadas a estas que, escolhidas apenas por serem de campos e de natureza diferentes, não deixam (no entanto) de constituir sinais de uma mesma realidade, ou seja, sinais representativos das múltiplas estratégias que fazem funcionar ou manter o dispositivo neoliberal do sistema. Um sistema feito monólogo injuntivo da cegueira económica sobre a insubmissão democrática.

Democracia? Tá bem, tá bem. As nossas leis cuidam disso e o monólogo faz o resto…

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quarta-feira, agosto 08, 2012

O FUTURO E OS SEUS ABRIGOS

 

artisticas-4O sentimento de um mundo frenético faz com que o tempo escasseie na tarefa demasiada humana de o entender. No desconhecimento sentido intolerável, reconhecemo-nos ameaçados mesmo sabendo que o tempo, esse tempo que parece faltar, é uma criação que nos transcende. Daí, o desamparo narcísico que nos enrola na demorada busca de calmas representações ou (ao invés) na angústia temerosa e bacenta das culpas indeclináveis.

Insatisfeitos e nostálgicos, despontamos o passado que se transfigura num confortável mas ilusório porto de abrigo. As memórias amigáveis de encantamentos experienciados (ou supostamente vividos) despertam assim, não futuros sabidamente improváveis, mas apenas movimentos ondulados e errantes de fugas e procuras que indefinidamente se equivocam. Desse desacerto, germinam as múltiplas e diversas especulações que buscam as leituras de uma realidade que teimosamente nos escapa.

Disputam-se assim racionalidades, propõem-se outros olhares e produzem-se diferentes realidades. Do mítico ao científico, do religioso ao político, as teorias veiculam distintas possibilidades e sugerem ordens que melhor prometem confortar as nossas angústias e acudir às nossas perplexidades. Aliciam-nos aquelas que nos parecem oferecer as representações mais tranquilizadoras, esquecendo-nos que a transferência é um investimento imaginário tornado mecanismo de defesa na procura apressada do conforto para o nosso desamparo.

Digo bem, uma procura apressada e, rigorosamente por isso, precipitada. É mais cómodo aceder a uma ordem supostamente universal e imutável, quiçá sagrada, do que acolher a possibilidade da realidade ser uma construção social e histórica, incontornável e intrinsecamente conflitual. É nesta conflitualidade (e numa perspetiva que admite a natureza fundadora da divergência) que o valor da transgressão se afirma, não só desafiando o saber e o poder instituídos como também construindo as vias para outras verdades eticamente necessárias que nos carreiam a diferentes mas necessários e mais solidários abrigos.