sexta-feira, dezembro 21, 2012

O ROSTO E A ALMA DO MONSTRO

wallpapers_monstros_e_demoniosEm jeito de acusação, acrimina-se o povo de ter gasto acima das suas posses como se a urdida overdose tenha brotado de um chão por cultivar. Trasvestidas a propósito, as sedutoras sereias da lavra e das melodias do bem-estar de outrora tornaram-se, na recentidade da agrura dos tempos, no seu avesso de íntegros “togados” das justas increpações. O uso hábil da contradição, costumeira nos reviralhistas, tem por serviço incutir nos outros responsabilidades que são muito suas e, se azo lhes derem, impô-las a esses outros por inteiro. Nesta melopeia moralista dos desmandos, e no que toca às presas aqui em conta, procura-se na subtil grosseria do gesto, dificultar que os sofridos se abriguem nas insólitas e execráveis “pieguices” e que, perante uma desconcentração improvável e a força obstinada de tamanha toleima, possam os niquentos comprometer o hino mavioso modulado naquelas duas vozes em denúncia à farra abjeta da misteriosa camorra.

Pois é… Cúmplice da insaciedade custe-o-que-custar do lucro desmedido, o engenho da fartura e das mais-valias fabulou interesses, engodou vontades, afeiçoou desejos inopinados, trapaceou consumos e, sobretudo, inventou conluiado o crédito atraente do-compra-agora-e-paga-depois. Novas racionabilidades assim se foram aflorando e, escorados neste habilidoso jeito, os prazeres prosperaram e sucederam-se no imediatismo turbilhonante de deleites necessariamente fugidiços. Encontrada a fórmula exata de espartilhar a lucidez dos sentidos, o circo do capitalismo consumista cultivou o seu chão, mercadejou tráficos, fez e desfez fronteiras e, com sagacidades e compadrices bem afinadas, foi encostando (sem rebuço) o Estado às cordas.

Deste estilizado desabafo, mais ideia e convicção do que entendimento entranhado no saber vivo dos peritos e das disciplinas da ordem, ressalta para mim a revigorante impostura da premissa política dos gastos desmedidos no proveito da sua útil e suscitada correlação com o pressuposto oportunista de estimular vantajosas más-consciências, de preferência subtraindo o indivíduo ao social coletivo. Deste fundo falseado (e nele radicado) despontam as razões traiçoeiras das práticas interesseiras (discursivas e políticas) de Passos&Companhia quando este(s), desfrutando da crise e do seu progénito “memorando”, apouca(m) o Estado nos seus méritos tendo em mente o rumo certo do oráculo neoliberal. A correção deseja-se assim radical e, neste vicioso e solto apetite, a regressão dos direitos sociais converte-se em desígnio nacional. Mas o rosto do projecto neoliberal revela-se de forma eloquente na sua incapacidade de assegurar um destino colectivo de segurança económica e justiça social [1]. Anuindo, vou no entanto mais longe; para mim, no monstro, pior do que o seu rosto repugnante, é a sua alma genuinamente endemoninhada.


[1] “Um modelo de insegurança social”, de Maria Clara Murteira, no LE MONDE DIPLOMATIQUE (Dezembro de 2012).

quarta-feira, dezembro 12, 2012

FEITIÇOS E MATREIRICES

6895061_4CuBUCom as marcas do tempo, reais ou imaginadas, o corpo demuda o espírito e, como tal, mais do que era costume, nem sempre acordo com aquela habitual boa disposição. No entanto, pior fico quando as ineptas moralidades, acuradas ou angelicais, sempre prontas e disponíveis a tudo deslindar, logo por essas manhãs mal-avindas, tecem ficções e alteiam palpites na ânsia de acalmar quem os espera impacientes. Ávidos e nervosos, esta gente inquieta, convertida em obedientes rebanhos – mediáticos, religiosos, políticos ou outros – escuta esperançosa, da voz atrevida de funcionários de verdades, ilusórias escapatórias que momentaneamente aquietam, não obstante o certo da sabida permanência da incerteza.

Neste ruído de fundo, reiterável e impercetível, tão enfadoso quanto vulgar, ouvem-se com adulação os clamores dos ascetas de todas as espécies, os verberativos teóricos do idiotismo, os ditames dos burocratas da política e, deste jeito feito bizarro acatamento, os taciturnos inermes das ditas tutorias creem alucinados nos seus servidores de dogmas carecentes. Pergunto-me, perante tão triste e debilitante décor, se será um defeito de fabrico dos humanos a vulnerabilidade que os conforma e os fazem prezar os amansadores que a todo o tempo contentam o insistente e irredutível enfado vivido na brumaceira das imperfeitas existências.

António Damásio, em “AO ENCONTRO DE ESPINOSA”, ao falar do poder dos afetos e da única possibilidade de triunfar sobre um afeto negativo, lembra o eminente filósofo quando este afirma que, para que tal aconteça, importa criar, pela razão fundada no raciocínio e no esforço intelectual, um afeto positivo ainda mais forte. É destarte que, neste contexto e linha de pensamento, Damásio recorda Espinosa citando-o: “Um afeto não pode ser controlado ou neutralizado exceto por um afeto contrário mais forte do que aquele que queremos controlar”.

No entanto, por kafkiano que seja, uma das mais infaustas patologias humanas é a extremosa deferência à ordem entediante do social convencionado. Pensa-se a vida com base em categorias que desencaminham a crítica e a sua pertinência, alienando-se daí as qualidades emancipatórias da realizabilidade (trans)formadora. Em resultado desta espécie de psicose, docilmente se enreda o indivíduo na sacralidade de uma realidade consertada na (e pela) prática hábil de infundados mas influentes poderes. Daqueles que todos reconhecem e refutam em voz alta mas (e sobretudo) de muitos outros obscuros mandos que abusivamente nos habitam mascarados, colonizando hábitos representacionais decisivos à ação e ao pensamento.

É certo que, quando genuinamente se crê cresce em nós a afeição pela crença. É próprio da condição humana. Porém, pelo consolo, partilha e reconhecimento, formam-se em torno dessa crença, naturais e inevitáveis pertenças. Umas mais abertas e permeáveis, outras mais cerradas e hierarquizadas. Umas cuidando da liberdade, outras desenvolvendo-a, outras ainda equivocando-a. Estando assim avisado destes feitiços e destas matreirices, defini para mim um princípio simples mas cautelar; correndo ousadias, deixei de me enamorar pelos poderes, designadamente abominando os que me apresentam verdades entufadas e me tomam por pateta. A dissonância cortês em nada me impacienta. Bem pelo contrário. Abespinho-me, isso sim, com a arrogância que impossibilita a crítica e renuncia ao exigente desafio do argumento. A falibilidade humana deste jeito a reclama e a reciprocidade a tal obriga. Falo da liberdade, à qual associo a razão fundada no raciocínio e no esforço intelectual de que Espinosa, com mérito, bem anuncia. Por respeito ao Outro, ao valor da Solidariedade e a mim próprio.

 

Imagem retirada DAQUI

domingo, dezembro 02, 2012

GRATO A NICOLAU SANTOS? UM ESCRITO QUE IMPORTA EVOCAR

jornalismoAcusamos hoje um tempo onde as liberdades de expressão, de imprensa e de empresa, como não podia deixar de ser, litigam legitimidades desencontradas. A obviedade das atrições daí resultantes, como se sabe, enleia os valores do jornalismo e da sua autonomia. Chama-se ao contraditório, entre outros, os critérios de independência, de rigor e de honestidade. Sem estes, ou sem as condições para o seu bom uso, trai-se a liberdade de imprensa e irremediavelmente desserve-se a responsabilidade social do jornalismo.

Esvai-se a ética, desencaminha-se a moral, afrouxa-se a lei e – nesta turbulência brumosa – os interesses, dos corporativos aos censórios de toda a espécie, açambarcam com destreza os consequentes mas tentadores extravios. Afloram então os valores editoriais e com eles força-se a vassalagem do jornalista à liberdade que lhe remanesce ou à serventia que aspira. Antes o enxovalho da obediência - quiçá prometedora - do que a penúria do desemprego ou a dor da incerteza. Ser-se pragmático não é assim (e neste contexto) condição de sobrevivência mas apenas e basicamente modo de vida.

Reconheço a simplificação do que acima está dito tendo perfeita consciência da complexidade do tópico em apreço, marcado como se sabe pelas múltiplas diferenças opinativas, quer de natureza histórica, filosófica ou política. No entanto, não deixa de ser no domínio dos media e nos tempos que correm de progressiva desregulação e concentração que, de modo conhecido e experienciado, a manipulação ideológica acontece sobre a informação, designadamente por parte dos poderes políticos associados aos grandes interesses económicos e financeiros. A comunicação social converteu-se assim e estranhamente, de modo amável, numa área auspiciosa de negócios. Acresce, contudo, que o sector financeiro há muito o havia enxergado e, sobretudo, a vem sabiamente confiscando.

A concentração das empresas neste campo do mediático, como se pode supor, não é apenas uma ameaça à liberdade dos jornalistas mas (no essencial e sobretudo) um espectro à liberdade de emprego. Os grupos de media constituem verdadeiros cartéis que, ao empregar a generalidade dos jornalistas e colunistas, ditam as regras e o futuro do trabalho daqueles profissionais. Qualquer jornalista que se porte menos bem ou se mostre incoadunável com um qualquer órgão de informação, apressa-se a esbarrar daí para a frente com muitas portas trancadas. É neste contexto ignominioso que o escrito atribuído a Nicolau Santos (ampla mas tardiamente divulgado) merece ser recordado, estimado e reconhecido. Como algures comentei, numa imensidão de sevandijas deparámo-nos com exceções que enobrecem o jornalismo e se engrandecem como homens. Como cidadão, pelo exemplo, estou sinceramente grato a quem o escreveu.