quarta-feira, janeiro 16, 2013

A PERMANÊNCIA DA MILITÂNCIA INSURGENTE

corrente-criticaA aposentação é uma fase da vida que sucede a muitas outras, umas por de mais inquietas, outras (in)utilmente seguras e outras ainda (talvez, poucas) de remanso aconchegado. Com a reforma apressa-se uma outra casta de desassossegos (e, sobretudo de ruturas) que suscita, na vida de cada um, inopináveis intimidações e/ou instigações, na contraditória presença de uma vida que se ausenta e de uma outra que, embora ainda ausente, se presta (por cumplicidade) ao diálogo da reinvenção. Apesar de alguns ganhos esperados, as perdas existem e o espectro da desagregação persiste em atrair (na sua peculiar crueldade) depreciações que envelhecem. Posto isto, interpelar (com convicção) o círculo e a materialidade do que (realmente) pode fazer sentido torna-se um eficaz antídoto para, com vantagem, alcançar um atraente porvir pese embora o que se abandona do tempo vencido.

Enquanto o corpo e a mente – solidários – permitem aspirar desses proveitos, há que cuidar desse bem, aliás cada vez mais escasso, destinando desígnios ao tempo incerto que o compõe. Confesso, que uma das atividades por mim adotada, por arreigada oposição ao politicamente conveniente, está no empenhamento aperfeiçoado da insurgência como prática libertadora de capturas múltiplas cevadas nesta (e por esta) paradoxal democracia. Nela, cria-se e faz-se prosperar uma cultura surreal (política e cultural) celebrando-se liberdades que, com descaro, se abastardam na densidade (própria e estranha) de tuteladas obediências que se impõem num angustiante crescendo. Dar forma à razão genuína, sentida e vivida como verdade, torna-se (assim) num experimento de recomeçados questionamentos e de infindáveis afinidades de reação e resistência.

Aqui, ali ou em todo o lado, não se pode dizer tudo, não se pode falar de tudo e muitos não podem sequer falar. O tabu, a ritualização e o privilégio dos que decretam e podem, aclaram assim os limites do dizível assinalando as sombras da inclusão (ou os territórios da exclusão) onde as singularidades se silenciam e os medos se escondem. O politicamente conveniente não é, nem poderia ser, um lugar rumoroso. Ele nada anuncia e a discrição é o seu poderoso disfarce. Habita (por isso), na excelência do silêncio, os lugarejos onde se engenha o domínio e a acomodação das verdades e dos saberes úteis. Verdades e saberes que obedecem a vontades de poderes combinados, embora nem sempre amigáveis, que dão forma e traçam os roteiros, beatos e amáveis, donde irrompe o dizível. A insurgência tem uma outra vontade, provavelmente avessa, não desconhecendo que os poderes renascem sempre e que sempre reagem onde a liberdade espreita. Assim sendo, a militância da insurgência regressa, igualmente sempre, ao prólogo de um texto que o legitima acreditando que o texto que sucede seja distinto, naturalmente para melhor…

Publicado na revista ESCOLAinformação (SPGL), de janeiro de 2013

Imagem retirada DAQUI

NA FORMATIVIDADE, O PODER E O DEVER DO TRABALHO IDENTITÁRIO

IMAGEM 1Como nota introdutória, direi que nos últimos dez anos, resultado da vida e das suas inescapáveis circunstâncias, desfrutei da aprazível fortuna de vivenciar e descortinar, através da partilha que soma valor e pelo trabalho reflexivo que neste se reconhece, novos e diferentes reptos no âmbito cercado e enredado da educação e da formação[1].

Dito isto e no que à formatividade diz respeito, a proximidade com gente adulta – sobretudo por entre a leitura e a interpelação das suas experiências biografadas – reclamou de mim a exigência de cuidar melhor de alguns dos conceitos medulares do campo educativo, e não menos das suas relações, à luz (sempre polémica) das suas procedências e disseminações, dos seus contextos de significação (históricos e políticos) e das teorizações que daí (de)correm.

Os conceitos envolvidos neste indefinível perímetro temático, sendo construções representacionais, facultam naturalmente entendimentos nem sempre concordantes (ou mesmo desencontrados) sobre os seus próprios objetos, não obstante a fundamentação atendível que os configuram. Deste jeito, tal confirmação autoriza a ilação lógica e plausível que os juízos, sejam eles sobre situações teóricas ou feitos em contextos de determinados de usos, possam colher (desses entendimentos) apenas uma e não a significância exclusiva.

Educar, formar, aprender e ensinar relacionam-se entre si de modos não só diferentes como desiguais tendo em conta que os sentidos aí incorporados se agilizam ante o entrecruzamento de diversidades marcadas por preferências, encadeamentos e recursos significativamente distintos e, mais relevante ainda, diversidades intensamente caracterizadas pela desigualdade e pela desproporção. E é com base nesta verdade fragmentada e condicionada, animadora da modernidade burocrática de programas institucionais, que se articulam (em silêncio) as reprimidas dimensões fundadoras e holísticas da esfera educativa, das quais (aqui) destaco as dimensões do desenvolvimento, das dinâmicas identitárias e das socializações.

Abrindo com a ideia de desenvolvimento, se num plano mais geral ela constitui uma inspiração totalizadora da política educativa e formativa, numa ótica mais individualizada, direi que essa mesma ideia se limita (por necessidade ou conveniência) à simplificável tendência aquando dos propósitos mais práticos e funcionais da escala retraída do ensino e das aprendizagens. Com efeito, importa dizer (e no estímulo que me encaminha, persistir) que não deixa de ser a conceção de (um qualquer) desenvolvimento que dá feição e trata de atribuir conformidade à tecedura relacional dos conceitos subentendidos, especificamente os conceitos que, neste breve texto, servem de referência (educação, formação, ensino e aprendizagem).

Parafraseando, com alguma liberdade, José Barata Moura[2], o homem faz-se – no seu fazer e no seu fazer-se – empreendendo sempre uma história rasgada em caminhos retraçados pelas determinações que vão acontecendo. Nesse jornadear, o homem é naturalmente determinado, capaz de determinar e, sobretudo, inquieto de se determinar. Hoje mais do que ontem, embora desde há muito, como detalhe, modelo ou prova, diria que a prevalência do económico, ao apresentar-se como uma qualidade primeira, faz com que o crescimento económico, no que respeita à educação e à formação, se torne um referente hegemónico e, com base nessa medida, se converta e se afirme no modesto e infundado equivalente político-institucional da ideia-rumo de desenvolvimento.

Num outro plano, e no que concerne às dimensões das dinâmicas identitárias e das socializações, com um incauto toque de atrevimento, acrescento que será naturalmente útil sugestionar (alegando e desafiando) que é na quotidianidade socializadora das aproximações (ao mundo, aos outros e a si próprio), como condição (ou mesmo, obrigação) de existir de um modo concreto e presente, que se significa e assim se aprende e, nesse envolvente movimento, continuado e aberto ao entranhável, se confere sentido ao conjunto de possíveis que se revelam à reinvenção contínua do que se é e, desse jeito, se vai dando forma ao próprio viver.

Aguardando não atraiçoar Bernard Charlot[3], e em apoio ao exposto, destacaria a minha concordância com a ideia por ele formulada de que a aproximação ao saber, feita de uma multitude de vizinhanças, “… não é apenas epistémica, mas é também identitária e social”. Dito isto, e na defesa axiomática deste meu intento, garanto que a experiência indica-me, e a convicção solidariamente adota, a ideia que é no quadro familiar de esquemas incorporados e estabilizados que, incontornavelmente, se radica e move a vital energia, embora partilhada, do diálogo íntimo e reflexivo que apadrinha a real predisposição de mudança e (com ela) a resiliência e o entusiasmo para caminhar no encalço do traçado desvio ascendente.

Para tal, os acontecimentos (passados e presentes) contam e só contam verdadeiramente quando, pela análise reflexiva, em momentos de descoberta, de construção e, nesse tentador e intenso curso, se transfiguram em impulso identitário. Rejeitar pura e simplesmente, querer algo a qualquer preço ou escolher apenas o que nos é oferecido, repete-se numa oportunidade de liberdade demasiado curta para uma consciência que se ambiciona (trans)formadora. A laboriosa (mas penosa) busca de caminhos próprios, reconhecidos por estes com exigência e verdade, carecem de um outro fôlego que alargue horizontes e comunique futuro e confiança a quem a eles se entrega.

Porém, distanciar-se das socializações que dificultam aquela entrega requer uma incessante tomada de consciência, e com esta, uma atitude subjetiva que proporcione um ser (um estar) disponível para o questionamento – inevitavelmente, conflituante e conflituoso – das imbricadas identificações que vão dando sentido às vidas de cada um. A subjetividade coabita, como se sabe, numa ligação estreita, com o mundo objetivo, pelos efeitos de contexto, agitação continuada das relações e das interações ou (ainda) pelas memórias resistentes que não se destroem.

O processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC), foi para mim uma experiência notável neste campo. Não pretendendo torná-la transversalmente representativa, considero que o processo de RVCC não é (nem foi) de todo um exemplo inócuo. Para muitos dos adultos, a realização do processo e a materialização reflexiva da sua historicidade, mais do que a certificação obtida, valeu pelo trabalho identitário alcançado no decurso possível de um distanciamento representacional progressivamente (re)conquistado, com expressão visível e explícita na (trans)formação pessoal e social que, de modo confesso, não lhes foi indiferente.

Finalizando, estou certo que aqueles adultos apreenderam que a identidade é uma invenção contínua que se tece com material não inventado. Por isso, compreenderam também que a identidade não é um dado mas um processo pelo qual as bases da socialização são trabalhadas e ativadas, incluindo as mais sólidas. Se assim é, como admito que seja, pensar a educação e a formação, nomeadamente de adultos com menor escolarização (mas não só), não pode nem deve dispensar este delicado mas necessário trabalho identitário. Ao menos, uma maior atenção e uma mais eficiente consideração por ele, uma vez que (a sugerida e enaltecida) educação permanente e emancipadora não deixa de por aqui passar. Na verdade, nascimento não é destino mas tão só um começo…

Publicado na revista ESCOLAinformação (SPGL), de janeiro de 2013


[1] Entre 2002 e os dias de hoje, assumi as funções de Avaliador Externo no processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC) e em diferentes Centros de Novas Oportunidades, inseridos em diversos contextos sociais e culturais.

[2] Em “Para uma Ontologia da Educação”, comunicação feita no Conselho Nacional de Educação aquando da discussão sobre as bases da educação.

[3] Citado por Ana Maria Costa e Silva, em “FORMAÇÃO – Espaço-tempo de mediação na construção de identidade(s)” (2007: 164).

sexta-feira, janeiro 11, 2013

A SUPERFÍCIE DO FUNDO

m-002_038Do orçamento de estado ao relatório do fmi, do governo para o dito fundo internacional. Um “bypass” cúmplice com significado político. No distrativo “zapping” noticioso inscreve-se (com desplante) o espectro decisório do Tribunal Constitucional. Assiste-se e requinta-se assim o desígnio da teatralização e da aliciação. É o mercado da atenção na sua ardilosa dramatologia da credibilidade conveniente. Sabe-se então que o estado de direito já não vale por si. Torna-se disputável e todos o reconhecem, a começar pelo governo que do facto procura dividendos.

As opiniões contam. Por isso, mais vale prevenir impondo limites ao opinável. Com sentido de responsabilidade, diz-se. Como qualquer mercado, deste modo, urge capitalizar, investindo e mobilizando. Na diabrura do gesto, a realidade converte-se no palco definidor da ordem útil das relevâncias. Naturalmente, com a cumplicidade amigável dos poderes mediáticos e dos seus capachos. Não a favor da Democracia e do seu aprofundamento. Antes do seu trágico esvaecimento.

O sentimento que se recomenda é (pois) o da contrição pelo pecado da avidez gozada. No limite, há quem já somou ao desacerto instilado a ideia de que está a mais. A casa deixou de ser aquela que pensavam ser a sua. A renda desembolsada e que lhes foi reclamada (repisam) não bastou. Mais, garantem nunca ter sido a bastante. Por isso, há contas por saldar e que só agora se apuraram. Não ao senhorio com quem se contratualizou. Mas a um outro que, pelos vistos, é senhor do senhorio e que os inquilinos desconhecem. Não há grana, levam-se as mobílias. Sem estas, o inútil frigorífico também pode ir. Despejo consumado, sobrevivem as paredes de um vazio onde apenas parece habitar uma cidadania descarnada.

 

No entanto, há ainda quem (obstinadamente) continue a chamar a esta casa, a sua casa; a casa da democracia. Citando Bertold Brecht, importa lembrar…

Pra onde quer que o expulsem, para lá

Vai a revolta, e donde é escorraçado

Fica ainda lá o desassossego.

terça-feira, janeiro 01, 2013

UM SILÊNCIO MALSOFRIDO

u136-Manos_dibujandoNeste período de solicitações desusuais, a liberdade desconjuntou-se por entre missões próprias da época e algumas escritas para outros endereços. Daí, este silêncio malsofrido para com este meu parceiro do grito argumentado. No entanto, duas daquelas escritas, colocá-las-ei aqui depois de publicadas na “ESCOLA/informação”, revista do SPGL (Sindicato dos Professores da Grande Lisboa).

A primeira das escritas termina assim; “ …O politicamente conveniente não é, nem poderia ser, um lugar rumoroso. Ele nada anuncia e a discrição é o seu poderoso disfarce. Habita (por isso), na excelência do silêncio, os lugarejos onde se engenha o domínio e a acomodação das verdades e dos saberes úteis. Verdades e saberes que obedecem a vontades de poderes combinados, embora nem sempre amigáveis, que dão forma e traçam os roteiros, beatos e amáveis, donde irrompe o dizível. A insurgência tem uma outra vontade, provavelmente avessa, não desconhecendo que os poderes renascem sempre e que sempre reagem onde a liberdade espreita. Assim sendo, a militância da insurgência regressa, igualmente sempre, ao prólogo de um texto que o legitima acreditando que o texto que sucede seja distinto, naturalmente para melhor”.

A segunda, num outro registo; “Finalizando, estou certo que aqueles adultos apreenderam que a identidade é uma invenção contínua que se tece com material não inventado. Por isso, compreenderam também que a identidade não é um dado mas um processo pelo qual as bases da socialização são trabalhadas e ativadas, incluindo as mais sólidas. Se assim é, como admito que seja, pensar a educação e a formação, nomeadamente de adultos com menor escolarização (mas não só), não pode nem deve dispensar este delicado mas necessário trabalho identitário. Ao menos, uma maior atenção e uma mais eficiente consideração por ele, uma vez que (a sugerida e enaltecida) educação permanente e emancipadora não deixa de por aqui passar. Na verdade, nascimento não é destino mas tão só um começo”.

Assim sendo, e depois desta justificativa, um “até breve” e – já agora – façam (o que está ao vosso alcance) por merecer um tempo mais respeitoso em 2013.