sexta-feira, maio 09, 2014

UMA SAÍDA LIMPA OU … UM BECO SEM SAÍDA?

 

 

Beco sem saída.
Beco sem saída?
(...)
Levanta-te meu Povo. Não é tarde.
Agora é que o mar canta  é que o sol arde
pois quando o povo acorda é sempre cedo.

(Do Soneto do Trabalho, de Ary dos Santos)

Retirado, tal como a imagem, daqui

becoOutras andaduras me têm recreado em desfavor destes meus catárticos apontamentos. Hoje, como habitualmente, acordei bem-disposto e com uma vontade distendida, diria quase selvagem, de fantasiar um mundo ao meu jeito. Neste meio tempo, ao sair de casa, pulsou em mim, por inesperado, o sobressalto de um inconfortável desprazer. O sol não se quis aliar ao ideado devaneio e a friagem do tempo acolitou, quase que de imediato, o esmorecimento do meu inicial e determinado intento. Entreguei-me, todavia, ao rotineiro sabor da “bica” matinal e ao costumeiro descamisar do jornal diário onde, em nada me reanimando, ensecou, de uma vez por todas, a vitalidade do meu auspicioso espertar.

Já azedado, a sempiterna e desapiedada mesmice mediática não me poupou, trazendo-me à leitura gente (falsamente) moralista que reitera em aparecer e comparecer para acidar a minha alma e ensaiar trapacear a minha inteligência. A austeridade, enquanto representação, na base da sua familiaridade doméstica, saltita assim do editorial para as mais diversas e mágicas notícias e destas para os escritos argumentativos que, pela persistência e repetição, têm por incumbência estender e consolidar a opinião que importa. Se a busca da verdade constitui uma infinda e laudável empresa ética e epistemológica, o dizer-verdadeiro não pode deixar de ser a sua condição necessária.

Por isso, é na penumbra desta meia-luz que acontece a transmutação da controversa e disputada natureza da austeridade. Dispõe-se dessa ambivalência e dá-se a volta a uma interpretação de vinculação moralista tornando-a, apesar do seu minguado conteúdo substantivo, numa conveniente e conivente máxima económica. Se esta proposição acarreia consigo algum crédito, importa então sondar a ideia de austeridade e desenredar a instrumentalidade da sua relação com a economia, tendo presente o pensamento que a avaliza e a redefinição das relações fundamentais da organização da sociedade que ela agencia.

A austeridade ao serviço de uma economia política tem apenas uma saída que é, bizarramente, o seu nuclear mas inconfessável desígnio. De acordo com a sua pertinácia ideológica de derruimento social e económico, persegue-se a desvalorização do trabalho, a reposição de uma economia alicerçada nos baixos salários e embarga-se a possibilidade de evolução das economias periféricas face às economias centrais. Deste modo, firmar as disparidades estruturais é o propósito, cimentando, como é óbvio, dependências funcionais de meros abastecedores de trabalho barato, ao mesmo tempo que se procriam dóceis hospitalidades para os excedentes superavitários dos poderosos. Para tal, a austeridade não é mais do que um marcador que vai redesenhando, limpinho, os horizontes políticos e económicos do futuro. De um futuro, afinal, que mais não é do que um beco sujo sem saída.

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