sábado, outubro 29, 2016

A JORNA DO DITO BANQUEIRO ANARQUISTA

 

O draconiano mercado tudo trafica, tudo subordina, e até mesmo o absurdo se transaciona. Torna-se casa de câmbio, lugar súpero no qual se opera o valor de troca dos homens. Muitos, diminuídos a ser valor produtivo e manadeiros de uma mais-valia extraível. Outros, igualmente numerosos, contas feitas, nada sendo, acrescentam uma maçada afinal utilizável. Neste pronunciado esboço, remanescem uns poucos. Gente providencial e qualificada que, agadanhando o frutuoso devido, com competência reconhecida, orientam a arrumação acertada dos demais merecimentos. Não só materiais como, principalmente, os simbólicos.

Daí, ser neste espaço subjetivo que a tagarelice de uma linhagem conceptual e argumentativa situa as suas necessitantes e pautadas arquiteturas que mantêm, reforçam e legitimam a batota social e económica. Ou, melhor dizendo, encenam as vantajosas patranhas que aclimam as gentes às obscenas desigualdades que perpetuam uma estirpe de moralidade, em que o pecado da injusta arbitrariedade, não só é absolvido, como se apresenta curandeiro. Conforme se comprova, discorrendo pela via láctea recortada pelas altas nuvens do rigor, da isenção e da juridicidade. Chover no molhado é, certamente, desperdício. Isto dito, passemos então à frente…

domingo, outubro 23, 2016

DIAS NÃO

 

Estou em dia não. Aliás, instantes e circunstâncias que se refazem a contragosto uma vez que tenho vindo, não tanto por me ter desapossado daqueles recursos coloquiais que me permitiam, tempos atrás, assegurar conversas obstinadamente recomeçadas, mas porque me sinto inábil em encenar dramaturgias simpáticas e estimulantes que animem as pessoas a uma cavaqueira prevaricadora de ramerrames enfastiosos que consomem as nossas ordenadas vidas quotidianas. Eis uma confissão forte, com certeza indelicada, mas que apenas tem por propósito admitir a esperança de uma simples, quiçá necessária, transgressão apta a um questionamento saudável das nossas transitórias certezas. No essencial, uma transgressão instruída e preparada para cuidar do avesso que o hábito, a fachada e a aparência nos acobertam. Tão-só.

sábado, outubro 22, 2016

A SIMPATIA NEM SEMPRE RIMA

 

A minha última postagem, faz-me retornar hoje a um certo argumentário tendo como tónica a anotação aí citada das boas maneiras ou, se preferirem, dos bons modos. Com o propósito de trazer, desafiando consciências disponíveis, uma atenção crítica para a arrogância e a presunção dos signos que nelas se inscrevem e, acima de tudo, convocar um olhar analítico e perscrutador para os arbítrios protocolares que, de modo valorativo, se auto creditam distintos. Em peculiar, no compartilhado mundo das castas assentadas na metagaláxia reinante e naquele outro disputativo cosmos proporcionado por uma atontada parentela que lhe é confinante. Este, lamentavelmente pateta e patético, figurando o seu comovente idiotismo de assemelhação na mimética e notória contrafação carnavalesca.

Em jeito introdutório, falemos de elegância, uma ideia simbolicamente muito apreciada pelo atributo que lhe é concedido graças a um certo imaginário induzido pela invencionice da catalogação social. O reconhecimento desmedido e incondicional da boa educação daí provindo e que acompanha a graduação de tal seriação, alenta, em si, uma suposta lógica de superioridade que naturalmente faz o seu pretensioso percurso. Todavia, no âmbito das boas maneiras, e da elegância a elas associada, do meu ponto de vista, duas perspetivas se fitam. Num extremo, temos uma elegância proeminente que se filia e persegue, na sua austera aparência, a simbologia litúrgica dos distinguidos; no outro, e em clara discordância, uma distinta elegância instruída na genuína empatia da consideração e da reputação pelo Outro, por esse outro que é sentido, na sua raiz, como um outro-eu.

As relações humanas de sociabilidade, podendo-se aproximar daqueles limites, manifestamente se localizam no cultural registo da contradição caminhante. Porém, parece-me óbvio que a autenticidade da empatia, no ato espontâneo de se afastar do pavoneio que enfeitiça a primeira, elegante e discretamente, condena os múltiplos disfarces sociais que levam ao enganoso jogo simbólico das superioridades, das dominações e das servidões. Entre o espaço do pensar e do dizer posiciona-se um campo de subjetividade onde muitas enormidades acontecem e, sobretudo, as mentiras da significação se produzem. As maneiras, as boas maneiras protocolares, desligadas dos seus contextos concretos, modelam comunicações que escapam às suas objetivas e fundadas determinações. Ou seja, e em tradução livre, rematando em concordância com José Barata Moura; a mentira não é apenas a fáctica. A mentira, ou melhor, a mendacidade não utiliza apenas a língua e a sua voz. Utiliza, e bem, o corpo todo. Inclusive, a dissimulação que o conforma.

terça-feira, outubro 18, 2016

UMA ARTE SUPERIOR DE TER RAZÃO

 

Foste desbragado na linguagem, descortês ou simplesmente antipático, por isso, perdeste a razão. Se a perdeste é por que a tinhas, ou tinhas a forte probabilidade de a ter. Ficaste sem ela, a razão ou a esperança de a ter. Assim sendo, a tua razão nulificou-se subsumida pela avidez esganada da tua expressividade. Imprópria, ou tão-só inconveniente. Decerto, usaste-a desajeitadamente. Sem dúvida descuidaste a ciência das boas maneiras. No essencial, desdenhaste essa arte superior de ter razão. Afinal não a estudaste, alcançaste ou praticaste. Não entendes, mas, certamente, tornar-te-ias destro na dócil e obediente agilidade de obteres, também, razão quando não a mereces. O que tu perdes neste tempo de consensos voláteis…

domingo, outubro 16, 2016

PELAS VIELAS DO PENSAR

 

E se eu me dispusesse vadiar ociosamente Pelas Vielas do Pensar, procurando resgatar uma nostálgica gandaia perdida, da qual guardo profundas lembranças? Na verdade, memórias que ardem no apático cinzentismo desta entorpecida e vigorante ordem de utilidade social, onde os idosos se tornam refugo e aos velhos loucos se requer cativeiro. Pois, o pouco que me parece restar faz-se-me vida e neste fazer-se atrevido, além do mais divertido, trago comigo um sonho de homem que me disponho, sem limites, ainda algum dia ser. Seguramente mais determinado pelo peso da idade e das circunstâncias, talvez com menos força para determinar utópicos futuros, esse sonho, infindavelmente legítimo de ainda me determinar, desafia-me a liberdade, ao longo dos tempos sempre vigiada, do uso ousado da lucidez que hoje em dia me acompanha, provavelmente mais madura, mas certamente deveras pungida e, talvez por isso, capaz de fundada insubmissão e desobediência à docilidade parva, e por isso patológica, de muitas das desnaturadas criações corrediças do ingénuo e medroso senso comum.

Esclareci tarde, porém ainda a tempo, que a responsabilidade não se funda em astuciosas abstrações, notadamente na circularidade acumpliciada e temerosa que ela projeta com escora nas imperfeições prescritas do dever e da obediência, mormente vindos do poder e da culpa. Tive, talvez um dia finalmente bem-afortunado, dia feito de muitos dias pesarosos, que enxerguei a liberdade, aquela da raiz da responsabilidade inteira, para além da tal frívola, a outra que não se pode reconhecer por completo quando se fica pela tranquila negação, ou sempre que a insurgência, desobrigada da razão, reage caprichosamente ou, ainda, nos numerosos instantes em se que decide sobre o que somente é facultado. Apoiado na ideia da dignidade como fundamento ontológico da condição humana[i] e tendo ela despertado em mim um sentido irrefutável de humanidade, pressenti vir a achar no labirinto das vielas do pensar, por vezes há muito abandonadas ou esquecidas, a presença vivificante da Liberdade na tarefa entranhável da responsabilização. Ou seja, no que fazer para cuidar e contribuir, através da palavra consciente, embora aventurosa e informal, para a dignidade do fazer-se humano. Este será o meu próximo roteiro. Egoísta? Comodista? Talvez. Mas será a minha improtelável e urgente viagem da escrevedura.


[i] Proposta de Fernando Evangelista Bastos