quarta-feira, novembro 30, 2016

RESGATAR A LIBERDADE DESSA VONTADE QUE NÃO NOS PERTENCE

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(Apresentação que fiz do livro, UTOPIA, PARA O AMANHÃ, de Francisco Coelho Madureira, ontem, na Livraria Letra Livre/Lisboa/Bairro Alto)

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Poderia, nesta circunstância embaraçosa, fazer aquele número de proferir umas breves palavras de improviso, com base num texto previamente escrito, seguramente bem arrumado nesta minha já apoucada memória e, assim, fingir um talento que realmente não disponho. No entanto, certo de que não se deixariam enganar, e muito menos nessa mentira cairia o meu amigo Xico Madureira, optei por este escrito – que vou acompanhar, confesso, por intranquilidade minha – procurando, prometo, proteger-vos da desagradável monotonia, bem como, e tanto quanto possível, fintar o lado enfastiante do formalismo.

Experimentando eu, uma habitual comodidade quando abrigado nesse mundo prosaico da linguagem do quotidiano, no instante do convite para aqui estar presente nesta função de me pronunciar sobre a obra, como é fácil de entender, senti-me na verdade desaconchegado quando pressenti a poesia a aproximar-se de mim, imprudentemente a me apadrinhar e, no limite, a me distinguir – evidentemente por amizade – para uma árdua incumbência de apresentação do trabalho, sublime e poético, como é o caso desta UTOPIA, PARA O AMANHÃ.


Sendo o ensaio, e a prosa por registo, o meu habitat – embora reconhecendo que a prosa também possa ser poética – estou seguro, contudo, que a poesia difundida pelo poema (versificado ou não) constitui uma forma superior da atividade escrita, já que ela se revela como criadora e produtora da palavra de invulgar efeito expressivo. Assim sendo, e sobretudo por estas mesmas razões, sinto que a responsabilidade daí vinda me inquieta e ameaça quando, fora daquele cenário da informalidade natural do coloquial, tenho de me pronunciar sobre ela, a poesia.

Não ousando aprofundar o tópico, penso que no texto literário vários aspetos se podem colocar, nomeadamente a sua mensagem/conteúdo e a sua peculiar expressão, aliás dimensões que presumivelmente são sempre escutadas ou lidas, e interpretadas, na busca de um sentido conjunto que se vai explorando no interior da inevitável relação entre elas, procurando assim desvendar o seu sentido no amplo horizonte do olhar do autor sobre o mundo, a vida e o homem que, na sua completa escrita, se esforça por unificar. Sendo certo que a expressividade é uma condição fundamental da arte e da literatura e, como tal, da poesia, e sendo eu um profano nestas acuradas matérias, deixar-me-ei então levar por um acomodado sentimento onde o afeto – e não a reconhecida falha de erudição – irá comigo viajar no percurso que então aí vem.

Começo por dizer que o meu amigo – e poeta – Xico Madureira é, para mim, uma daquelas pessoas que nos traz sempre, com a sua presença, uma boa disposição, assistida por um permanente e elegante humor, mesmo quando arrisca no seu acertado sentido jocoso, inscrevendo nele a sabedoria subtil da sua inteligente mordacidade ou, bem mais difícil ainda, quando enfarpela habilmente a sua causticidade numa inesperada precaução servida com requinte e galanteio. Mas, o que importa aqui verdadeiramente sublinhar é que esta sua peculiar leveza radica, não só numa incomum experiência humana, como numa rara e valiosa experiência do humano, ambas enlaçadas nesse superior desígnio de vida e grandeza existencial. Aliás, é desse lugar alcançado que se ergue essa ideia que os poetas não desistem de evocar, ou seja, a ideia de que a vida é contraditória, embora jamais deixando de reconhecer e de buscar, como o Xico Madureira muito bem assegura, a inabalável dialética da unidade que a ordena.

Ao longo deste texto poético, o Xico Madureira coloca-se nesse preciso e valoroso ângulo que lhe permite avivar esse enfoque, nele generosa e teimosamente reiterado, de que este real não satisfaz, provavelmente em tempo algum ele será completo, mas que ela, a realidade, não pode é ser aceite com tanta falta, sobretudo de justiça, dignidade e fraternidade. Por isso, regressa ao passado e procura salvá-lo trazendo até nós a voz magoada das desilusões, das injustiças e dos desesperos. Melhor dizendo, o Xico Madureira dá-nos a escutar essa constante voz silenciada ao longo do tempo e a todo momento esquecida pela perfídia e pela mendacidade dos usurpadores. Resgata assim, de uma forma admirável, esse sentir oculto dos vencidos, lembrando – com o seu gesto poético – que tudo o que aconteceu não pode ser considerado perdido para a história e, consequentemente, para o seu impulso futuro. Fá-lo naturalmente com emoção, uma emoção que percebemos ofendida – por que arreigada na inteireza das suas convicções – e que, percorrendo ela, a emoção, todo o seu texto com tonalidades diversas e oscilantes, assim vai o Xico progressivamente esboçando a sua, a nossa utopia.

O esquecimento é, na verdade sempre foi, uma forma de burlar a história. Esquecendo não se faz justiça aos que lutaram pelo acerto do seu movimento. Esquecendo, faz-se do desacerto a alegoria única e certa da história. Porém, ao invés, lembrando, rememorando o que não pode ser esquecido, abre-se as comportas da memória, salvam-se verdades abandonadas e aviva-se a chama da imaginação. Este texto do Xico Madureira, hoje aqui presente e apresentado, sendo poesia, está para além da mera representação da realidade. Este texto, esta poesia – como queiram – acima de tudo, torna-se um apelo à reflexão sobre a realidade, projetando-a no tempo desse futuro utópico que saberá merecer a liberdade que cuidará da dignidade da condição humana, como tão bem deixa transparecer o Xico Madureira neste seu “poema para o amanhã”.

A nossa história, a nossa humana história, é feita através dessa imemorial e indeclinável prática que se batiza de vida. Porém, é neste viver, nesta materialidade da vida, que se engenha e se arruma modos distintos de consciência. Deste jeito, não é uma qualquer e prévia consciência que sentencia uma qualquer história. Quando a lembramos e a evocamos buscamos a nossa verdade, por vezes inescrutável e desafiante, que nos amarra, consciencializa e, igualmente, nos inquieta e inspira. Desejavelmente com a coragem e vontade de a percorrer, com a singeleza de aceitar essa caminhada como um recomeço, ou melhor, um incessante e continuado recomeço, como depreendo da mensagem que neste livro nos é transmitida.

Uma consciência crítica predispõe-nos, assim, para um incessante e continuado recomeço. Proporciona-nos igualmente um saber analítico e crítico que nos faculta meios para escolher a todo o momento de que lado da trincheira nos devemos colocar. Mesmo que as vitórias se vislumbrem remotas, quiçá improváveis, sobrevém um sentimento de verticalidade que inventa forças e energias capazes de um fecundo cultivo nesse fértil terreno da resistência, da revolta e da insubmissão. As vigilantes e desveladas memórias anteriormente referidas não se deixam atraiçoar, de modo fácil, pelas ideologias sedutoras do calculável, pela uniformização de perigosos bons sensos e, muito menos, pela liturgia política dos lugares comuns desta sociedade que alguém totalmente mercantilizou.

Assim sendo, resta-me agradecer ao Xico Madureira por me ter trazido de volta algum entusiasmo adormecido. Como tão bem ele nos interroga nessa peculiar estrofe:

Alguém quererá ficar ausente de si próprio na hora de ir e conseguir a liberdade tão urgente? Ficará indiferente ao triunfo do resistir?

Termino. Obrigado Xico, pelas tuas palavras e pelas mensagens que delas irrompem. Por mim, e para mim, não as guardarei. Delas me servirei para libertar essa vontade que não nos pertence, a bem de uma condição humana que ofereça à fraternidade a hora de desenhar o futuro da tua, nossa UTOPIA.

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