quarta-feira, junho 21, 2017

A FAMILIARIDADE DA LINGUAGEM E O DESCONCERTO POLÍTICO DE TORNAR O POBRE, UM BOM POBRE


Burgueses há muitos. Os que são porque o são. Outros, porque o cobiçam ser. Outros ainda, porque já os macaqueiam duvidando vir a ser. E, finalmente, a maioria, ou seja, os restantes pobres que se decidem burgueses. Os únicos tangíveis são os matrimoniados com o sistema, que neste vivem bem acolchoados e sabem, igualmente bem, porque razão nele habilmente logram permanecer. Todos os outros, particularizam-se pela natureza da sua ambição de ser, servindo-se de palavras, gestos e esgares grotescos, na qual a farsa, a mistificação, a hipocrisia e a própria imprevidência se caldeiam com a ensimesmada ignorância ou, pior ainda, com o cabal arroubamento de espírito.

Porém, existem Outros. Os pobres, os verdadeiros pobres, os assistidos, aqueles que não têm sequer ensejo para fantasiar e, por isso, atassalham a possibilidade de mitigar a realidade, macaqueando ou cobiçando sonsos e ociosos paliativos. Então, como reconhecer e discernir, não propriamente para surpreender os referidos originais, farsantes ou otários, mas sim o discurso que a todos estas figuras une? Quem é essa gente? Eis alguns sinais que emergem das raízes, relações e entrelaçados circunstanciais dos seus cerceamentos:


- É gente que abomina considerar e aprofundar as causas da pobreza e das desigualdades, culpando amiúde o pobre pela sua própria desgraça, abandonando, deste acintoso jeito, o valor da ordenação política e social do bem comum;

- É gente que exalta, com alma assistencialista, a certeza de uma ordem natural, conformada pela fatal e eterna existência de ricos e pobres, e que, com inocência larvar, escutam e acedem ao catecismo capitalista;

- É gente que julga, sobretudo o outro-desfavorecido, com um olhar forjado de paternalismo e que, acima de tudo, corrompido pela arrogância moral, se desgasta em promover a inverosímil inclusão, ao mesmo tempo que se espreguiça enfastiado em cuidar da exclusão;

- É gente que regurgita tacanhos preconceitos e lugares-comuns e, insolentemente, condena o pobre à cicatriz das profusas e hospedadas indignidades, servindo-se do apoio institucional como resgate das suas consciências aturdidas;

- É gente que pensa o social com estórias que moralizam as qualidades dos vencedores e, do lado avesso, fabuliza a responsabilidade dos sofredores pelas suas fraquezas e vícios;

- É, não terminando, gente que indaga a economia como uma esfera pessoalizada, abalizada esta como dissoluta, desmerecendo a agiotagem financeira e estrutural da riqueza prevalente e, mais do que isso, apoucando as partições socialmente mais cavadas.

A pobreza é, no fundo, e apesar do nosso estranho progresso, uma sujeira civilizacional que causa inquietação, perplexidade e, sobretudo, um legítimo descontentamento face a esse imenso poder tutelar capitalista que a modela e ajusta. Poder suspeito, mas ainda assim, bem rodeado por essa gente, uns mais despertos e sabedores, outros, talvez a maioria sonhadora, ausentes nos seus confortos mesquinhos. Para estes, a linguagem é aconchegadamente neutra. Jamais a disputariam como política. Como diria Yuval Harari, o uso do algoritmo capitalista é um descanso aconchegante.


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