domingo, setembro 10, 2017

OS NÚMEROS NÃO MOLDAM SENTIMENTOS


A política, ao institucionalizar-se, desvia amiúde o seu centro de gravidade. A apressurada dinâmica, que advém da presteza combativa do seu (des)caminho, causa ingénitos efeitos nocivos. Destes, em particular, se afloram os prementes jogos (formalizados) de poder, assim como, o arrasto de sagacidades desperdiçadas ou, mesmo, desgraçadamente transviadas. Entre outros efeitos, sequelas na perda de compreensão crítica das dominações e das oposições, nesse comum que rasga a imensidade diversa dos cursos humanos, mormente, dos inscritos na lavra do social.

Não se declina aqui a necessidade de urgência na luta política. Quiçá, por essa imperativa razão, interessa sulcar e, acima de tudo, brigar por um conceito de política mais amplo, mesmo que o reconhecendo ontologicamente incontentável. Amanhando solos abandonados e circunstâncias muitas vezes desmerecidas, na certeza que a democratização do sistema político não pode realizar-se ante a indiferença da sua capilaridade e disseminação. Mais, na convicção profunda que a democratização das relações sociais constitui o medular onde o político se crava.

O programa FRONTEIRAS XXI (RTP), do dia 7 do corrente mês, sob o tema “Mobilidade: Subir na vida é possível”, revelou-se certamente um estimulante debate para quem o presenciou. Neste, marcaram presença, Leonor Beleza, presidente da Fundação Champalimaud, Johnson Semedo, fundador de uma academia de futsal que apoia jovens de bairros problemáticos e Susana Peralta, uma especialista em economia política e pública. Elucidando o qualificativo de estimulante, direi (da minha parte) que não foi tanto pelo que se disse, mas pelo que ficou por tematizar, sobretudo no plano do entendimento da política e da clareza das políticas que o tema compromete.

No essencial, as patologias do capitalismo, relacionadas com a mobilidade, essas, estiveram praticamente ausentes do debate. O reconhecimento dos problemas foi murmurado em tonalidades distintas, acompanhado por subtilezas igualmente dissemelhantes. Convergência houve no que respeita às consequências lesivas das desigualdades económicas com outras (derivadas) formas de desigualdade. No entanto, como acima se sugeriu, estas (outras) pouco ou nada foram tematizadas, sobretudo tendo em consideração a forma global e integrada como (e onde) se inscrevem. Deste jeito, no debate escapou-se ao registo político do estrutural e do estruturante, situando a análise crítica na consonância inofensiva do moderado e certinho enunciado.

Ainda assim, Johnson Semedo não deixou de ser claro. Alvitrando a dimensão moral da distribuição de riquezas, objetivou algumas das consequências daí decorrentes. Em especial, no plano das desigualdades que, neste breve texto, particularmente relevo. Deste modo, não deixou de materializar algumas ideias, por si experienciadas, que se manifestam maquilhados nos replicados discursos, sobretudo políticos. Expondo-os ao meu modo, eis algumas dessas ideias:

§ As desigualdades revelam injustiças e não meras circunstâncias episódicas imersas na formalidade de uma (suposta) igualdade política estabelecida;

§ As desigualdades não podem, como acontece, induzir desqualificações, incapacidades e exclusões com base em apriorismos (díspares) nelas simbolicamente assentes;

§ As desigualdades, ao fazerem-se reiteradamente acompanhar de desmerecimentos e depreciações, criam (e estruturam) hierarquias sociais parciais, e como tal, discricionárias;

§ As desigualdades, quando expostas e questionadas, fazem-se interpelantes ativos da indissociabilidade entre os meios e os fins da justiça, bem como da própria democracia;

Deste modo, Johnson Semedo, na sua linguagem simples, consistente e transparente, fez ressaltar a ideia-síntese de que as desigualdades, quando enxertadas na rotina dos dias, passam habitualmente despercebidas. Todavia, quando alcançam vida e visibilidade no quotidiano da denúncia, alargam o campo da análise política e da decorrente reflexão sobre as formas múltiplas e veladas de dominação e de arbitrariedade. Advogando tais ideias, que das suas palavras condenso, Johnson Semedo contribuiu para o despertar de consciências sobre a necessidade e a legitimidade das lutas sociais emancipatórias, sugerindo naturalmente que se pense as desigualdades na sua merecida complexidade.


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