domingo, outubro 29, 2017

JURO QUE NÃO VOU ESQUECER


A proximidade, o sentir dessa afabilidade que por vezes suscita e (desse causar) nos inspira, a um misterioso acordar humano do adormecido que permanece teimosamente na indignidade do nosso descuido.


Texto de António Lobo Antunes, Visão


domingo, outubro 22, 2017

A INVERDADE DA VERDADE DA EVIDÊNCIA


Com proximidades e sentimentos díspares, e proporcionalidades desiguais, o FOGO-CALAMIDADE é sempre uma evidência que desperta múltiplos sinais. Paradoxal e juntamente, a evidência atrai, em circunstâncias desta natureza, apaixonadas respostas invariavelmente precipitadas. Mais do que soluções, estas obscurecem as razões quanto a elaborações possíveis de leituras seriamente fundamentadas.

A liberdade de discorrer e ajuizar sobre a tragédia é inatacável, mas o abuso de pensamento e expressão, sobretudo no domínio da responsabilidade política, não pode deixar de ser reprovado pelos critérios de rigor e disciplina exigidos por uma conscienciosa e genuína vontade de empreender uma consequente e séria reflexão, obviamente aprofundada, consolidada e crítica.

Assim sendo, a evidência, enquanto tal, pode somar tolhimentos às dificuldades de compreensão das coisas. Através dela, corre-se o risco de aliciar e manipular a natural e humana superficialidade do visível, do emocional e do trágico. O imediatismo aí se enraíza, tornando a desconstrução dessa evidência uma exigência penosa e difícil. Por isso, é determinante avivar a vigilância à natureza das inquirições e aos arrebatados entendimentos daí decorrentes. Afinal de contas, estas poderão constituir não mais do que acrescências que ensarilham o PROBLEMA e não, de acordo com o que se pretende, alcançar as imperiosas indicações benéficas à cura que se busca.

O rigor e a disciplina no pensar, passe o juízo normativo, não pode ser descuidado e, muito menos, aviltado em momento algum. Mormente, nestes dias calamitosos marcados por reconhecidas causas de viciosas políticas que, ao longo do tempo, a vários governos responsabiliza. A incompreensão pode conduzir, assim, a um excesso de palavras frívolas, a trás das quais se acoberta o essencial do PROBLEMA e se omite a sua lamentável história. Eis, deste modo, um novo problema, aquele que sobrevém da inverdade que a verdade da evidência se arrisca a ocasionar e a fazer frutificar, desvanecendo assim o verdadeiro e lídimo PROBLEMA.

terça-feira, outubro 10, 2017

DECERTO, ILUDINDO O DESABRIGO DO TEMPO

Um tipo, quando escala a uma idade mais avançada, bem vivida e calejada, é natural que se vá dando, com o tempo, a um outro andamento. De quando em vez, a vivacidade que lhe remanesce resiste melhor às sacudidelas do imediatismo e a experiência dos refolgos, à peculiar condição, faz-se aprendizagem. Benfazeja por vezes, se bem que correntemente inquietante. Em tais casos, despertam-se inéditos acessos, alguns deles impremeditados, dificultando que os caminhos outrora demasiado espezinhados, e hoje não andarilhados, se façam penosos e soberanos vazios que unicamente a resignada memória dá conta de habitar. Assim sendo, e acompanhado por este acolhedor otimismo, vai-se rasgando este novo tempo resguardado, tanto quanto possível, das inevitáveis intempéries da vida.

É isso, creio eu. Não obstante, pergunto-me se acredito mesmo crer? Ou, pelo contrário, se calculo eu que o seu avesso abrigue mais verdade? Não sei. Releio o que aqui aprontei em jeito de texto, rabiscado e acomodado por palavras acotoveladas pela vontade de enxergar futuro. Afinal, o que de sincero admito no que acabo de escrever? Com efeito, não sei. Suspeito, isso sim, que o essencial eventualmente me tenha atraiçoado e escondido atrás das doces e simpáticas palavras, que essa vontade, mais do que eu, soube juntar. Se assim aconteceu, porventura, ainda bem. Por certo, sensatamente não quero agora sequer encontrar as inverdades que elas encobrem, as indignações que elas mascaram e os ressentimentos que nelas rodopiam. Por conseguinte, repito, não sei, não quero saber. Mais-quero, isso sim, deixar-me encantar melosamente pela exalação desse bálsamo que o otimismo, generosamente, desprende e espalha e eu, respirando-o, dele possa beneficiar.

sábado, outubro 07, 2017

SURPRESA, OU NEM TANTO?

A densidade do institucional demarca e orienta olhares, atenções e intenções. Descuida, por pecha, margens de vida por ele postergadas. As vozes das cercanias não são escutadas pela estranheza dos seus timbres e os seus silêncios fazem-se falsamente insignificantes na paisagem do quotidiano político

Fazer ciência política exige saber e talento para tal. Por manifesta desqualificação, analiso e procuro explicações, aliás persistentemente hesitantes, para os factos e acontecimentos políticos que observo. Por isso mesmo, neste breve texto comprometo-me a não transpor a raia desses ajuizados limites. Para mais, admitindo que o objeto a apreciar é uma realidade que, em concreto, confesso, a represento marcada por calorosa intuição. Assim, para além destas pouquidades, acresce também a natureza compósita do fenómeno observado. Logo, deste apenas isolarei um tópico que me atrai, e nesta contingência, de óbvia natureza empírica. Ou seja, o aspeto da confiança política, que creio relevante para uma leitura compreensiva, seguramente transversal do ponto de vista disciplinar, dos resultados eleitorais autárquicos em Peniche.

Pensar a eleição autárquica em Lisboa ou no Porto não é a mesma coisa que considerar a mesma eleição numa pequena cidade como Peniche. Tendo presente a ideia de confiança política, de imediato se me coloca, nestas circunstâncias, a possibilidade de a interrogar na sua natureza, materialidade e abstração. Como é sabido, o conceito de confiança acolhe coloridos distintos e, daí, qualificativos igualmente característicos que, paradoxalmente, apontam diferenças que estabelecem alteridade. Ao expressar confiança rodopiamos à volta de sentimentos, convicções, crenças, familiaridades e simpatias. A confiança política, não dispensando tais translações, convoca (e consente) mediações de múltiplas influências (institucionais, ideológicas ou outras) com consequências semânticas indomesticáveis. Assim sendo, as referências que deste modo a suportam vão-se ressignificando, no encalço de atingir, ao fim e ao cabo, o argumento síntese da fundada e alegada confiança.

Peniche, sendo, como se disse, uma pequena cidade, e como qualquer cidade pequena, é caracterizada por um tecido enraizado em dimensões comunitárias, de natureza diversa, ocasionador de proximidades e solidariedades, bem como de convicções partilhadas de valores e, naturalmente, de identificações que daí decorrem e que importa considerar. Sem pretensões de profundidade, e tendo em atenção as indagações acima referidas – natureza, materialidade e abstração da confiança política – é aceitável pensar que a matriz das mediações, neste contexto de maior proximidade/pessoalidade, experimenta o desafio de confinidades múltiplas que despistam, como se comprovou, lógicas de certo modo consolidadas ou previsíveis. A confiança política mescla-se, assim, com a confiança pessoal, e esta, com a calorosa simpatia que particulariza, acresce àquela outra o vigor que a testemunha e compele ao voto. A democracia não dispensa partidos, mas terá de aprender a viver (e a indagar-se) com estes saudáveis embaraços.